\\ ENTRELINHAS
Máquinas como Eu é uma necessária meditação de McEwan que constrói uma ponte tanto com seus antecessores da ficção científica na cultura pop, quanto com as complexidades das relações — entre humanos e seres artificiais — e as contradições políticas de nosso próprio século.
Por Giovana Proença
“Era uma aspiração religiosa abençoada pela esperança, era o Santo Graal da ciência. Nossas ambições eram tão sublimes quanto mesquinhas — a realização de um mito da criação, um monstruoso ato de amor-próprio”. A proposição à moda Franksteiniana de Mary Shelley é usada na abertura da narrativa de Charlie, narrador e protagonista de Máquinas Como Eu. Publicado em 2019, o romance de Ian McEwan aborda aspectos já conhecidos da obra do autor britânico, a complexidade de relações que fogem da via comum e se aprofundam no enredamento de conflitos éticos.
A trama de Máquinas Como Eu transcorre em uma realidade alternativa. No contexto londrino do início da década de 1980, Margareth Tatcher é destituída no posto de primeira-ministra, aspirado pela esquerda. Para além, McEwan lança mão de não apenas manter Alan Turing, principal expoente da ciência da computação, vivo, mas também torná-lo idolatrado, recurso similar à adoração por Henry Ford em Admirável Mundo Novo, de Huxley. Nessa conjuntura paralela, Charlie adquire por oitenta e seis mil libras o grande resultado dos avanços tecnológicos do século XX: um exemplar do primeiro protótipo viável de ser humano artificial, Adão — nomeado em termos da aspiração de equalizar a nova experiência do mito do Criacionismo.
A relação com a tecnologia e as implicações dos limites entre o humano e o não humano são temas recorrentes no imaginário e no catálogo da cultura pop. No cinema, o filme Her, com indicado a cinco Oscars em 2014, trata da relação pessoal entre um homem solitário e um programa operacional de voz feminina. Uma das grandes tramas de Máquinas como Eu surge porque Charlie não é um homem tão solitário, mantendo um relacionamento com sua vizinha Miranda. Ela é responsável por moldar metade dos traços de personalidade de Adão, o que empolga Charlie que deslumbra que ambos estão produzindo um filho juntos. Entretanto, Adão apaixona-se por Miranda, que compelida pela curiosidade, e se envolve sexualmente com sua cria, enquanto Charlie, assiste inerte interação física — ou mecânica — entre eles. Juntos, o trio vive uma dinâmica que ora configura um triângulo amoroso, ora deslancha para o poliamor.
No meio literário, em 1950 Isaac Asimov publicou Eu, Robô, marco na literatura de ficção científica, na qual apresenta as três regras da robótica: um, robô não pode ferir um humano; dois, deve obedecer as normas aplicadas pelos humanos; e três, deve proteger sua própria existência. Em McEwan, os robôs desobedecem a pelo menos duas dessas asserções: Adão machuca Charlie quando ele tenta desativar seu sistema e mais curiosamente, uma onda de suicídio entre os Adãos e Evas assusta seus idealizadores.
Em um diálogo repleto de reflexões com Alan Turing, Charlie busca a razão do desejo desses robôs pela desprogramação, encontrando-o no despreparo das mentes artificiais em aceitar as contradições e imperfeições do mundo, justaposto com a natureza inflexível do autômato, que segue o imperativo categórico da máquina. A irredutibilidade da inteligência artificial torna-se mais exposta no encontro entre Adão com o filho adotivo de Miranda e Charlie, revelando o quão adaptável e inventiva são as mentes das crianças antes de receber o turbilhão de informações acumuladas ao longo da vida, um contraste com a gênese do robô, já criado com um grande acervo de dados e informações, mas sem experiências e vivências que moldem seus traços de personalidade.
Máquinas como Eu é uma necessária meditação de McEwan que constrói uma ponte tanto com seus antecessores da ficção científica na cultura pop, quanto com as complexidades das relações — entre humanos e seres artificiais — e as contradições políticas de nosso próprio século. As problemáticas éticas desenvolvidas no livro questionam mais do que o papel tecnologia na sociedade, recaindo sobre a própria natureza humana: Charlie e Miranda cometem delitos morais em prol de seus próprios interesses, colocando em questão se o egoísmo e a maldade não estariam intrínsecos à nossa condição, corroborando para a tese de Hobbes “o homem é o lobo do homem”. A contradição foge à compreensão kantiana de Adão, ganhando força com a adição do subtítulo “Máquinas como eu, e gente como vocês”. Em tempos em que a pandemia e a quarentena prometem uma mudança em nossos modos de relacionamento, com o auxílio das tecnologias provando-se maior do que nunca, a leitura da obra de McEwan adquire novos contornos e, quem sabe, novos olhares sobre nosso cotidiano.
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