\\ ENTREVERES
sobe um sotaque português a entonar os versos de uma poetisa com pé nestes trópicos
por Matheus Lopes Quirino
para N.
Como um pobre coitado que está a limpar as folhas secas que estão na calçada, com nada mais que um rastelo, nada adianta. Vem o vento e bagunça tudo. Homem, cabelos, folhas e rastelo. Estou diante do espelho daquele banheiro com louças verdes. Me encaro, mordo os lábios, torço a cara, não a ponto de ver o Diabo, pelo contrário, piso em algodão açucarado, estou a derreter ali.
Saio do banheiro em direção ao quarto como vim ao mundo, no meio da madrugada, como um vulto, me confundo com as sombras da noite. Uma virada em V. Suspiro já aliviado enquanto não enxergo nada; o instinto me conduz ao leito quente, suado, com cheiros e outras tantas palavras que repousam naquele colchão no chão.
Tudo incrivelmente ganha um sentido nebuloso. Como se a cigarra da Alice soltasse um copioso jato de vapor por todo aquele quarto, todo aquele apartamento, todo o centro da cidade. Os dias de verão são úmidos e nebulosos como aquele quarto naquele estado, nós dois ali no chão em meio a palavras, meias, cuecas, comprimidos para alergias e anti-inflamatórios, livros da Penguin Books e jornais amarelados, necessaires com pílulas para hipocondria, muitos copos de água, todos vazios e um abajur vermelho com luz amarela.
Respirava fundo tentando não fazer barulho, estávamos meio dormindo, meio acordados. Ia me encaracolando ali onde o silêncio reinava, mas em minha cabeça um turbilhão de vozes com perguntas lavrava esta selva tropical que pensa em flores e frutos proibidos.
Lá atrás no espelho ri. Ri porque pensei em todas as palavras jogadas ali no colchão. Nas que não precisavam ser pegas com a mão e enfiadas na boca como uma pílula. Pois já estava fazendo efeito.
E aquilo ia surgindo como a luz natural que entra no quarto pela manhã. Quando não há jeito se não ser desgarrado pelo despertador, mas, no fundo, pelo mundo.
Felizmente o mundo dá tréguas aos domingos, mesmo que se desgarrar seja necessário: macaqueamos em outros galhos, voltando à toca, à noite.
Sibilos, vozes, forro, cuícas, garrafas sendo atiradas no asfalto, gargalhadas sendo ouvidas de quem habita fora daquele quarto, daquele apartamento, do centro da cidade.
Estamos de novo no escuro. Na pira dos acrobatas, coelhos saindo e entrando em cartolas fictícias e o faquir engolindo com maestria um ou outro canivete. "Pum, pum". Não há plateia para aplaudir silenciosamente. O soslaio denuncia. Dai vem uma série de perguntas com as palavras jogadas ali no chão ou no colchão.
E andamos com elas na cabeça, esperando a deixa para dizer sem tanto negrito ou caixa alta. Ou só saber mesmo, quando os pequenos atos denunciam aquilo que os subterfúgios do grande circo místico acaba por suspender no ato da corda bamba da juventude.
Sai da boca um verso triste de poesia. Depois um feliz, como se os dois se completassem. Abrem as flores noturnas e já não consigo mais parar de sentir aquilo com aquele ser ao meu lado. E já não bastasse a memória falhar, a perna tremer, o escuro ser bem-vindo para olharmos mais atentamente um ao outro, já não bastasse tudo isso, sobe um sotaque português a entonar os versos de uma poetisa com pé nestes trópicos.
No dia seguinte, ele deblatera com o tempo e o mundo para ficar mais meia hora, e eu continuo mudo assistindo, esperando o momento certo pra usar a palavra certa. É assim, entre os silêncios do não dito, talvez dissesse "tudo bem", mas mais: demonstrasse.
É neste momento que açoito a Vênus que me rege, sob o signo de Gêmeos. Aquela Vênus anti-Milo que está para ocultar o que sentimos. Como um escudo para não se deixar ser penetrado pelo que já se apoderou do nosso corpo. Apenas não dizemos o já sabido. E tudo bem.
Olho para o cartaz da Sônia Braga e lembro da música "Hoje", do Taiguara. E foi hoje, nessa madrugada, já na troca com a Aurora, é hoje que me vi sem saber dizer, escovando os dentes na pia de louça verde. A enfrentar as caretas que levam ao Diabo, a saber que talvez exista, sim, volta. Mas já não será mais a mesma coisa.
E o horóscopo repousa na mesa ao lado da garrafa de café preta de plástico. Ao lado dela, uma caixa de bombons finos, lacrada. E ela é para mim. O horóscopo está bom, Netuno e Plutão estão em trígono, é a primeira vez que provo aqueles bombons, daquele jeito.
Taiguara se mistura com Debussy, o sol renasce e a cortina já não encobre mais nada. Sou um desses bichos de concha que saem da areia e andam de lado. Às vezes como um vulto entre quarto e banheiro, às vezes como certos fantasmas que vivem entre o espelho, a rua e a alma. É encantador o retrato que vejo naquele quadro.
O dia nasce, a nuvem se dissipa. Calço os sapatos ao som de Madonna, mexo no emaranhado de fios caracol e rio, novamente, sem dizer uma palavra. Elas estão espalhadas pela cama, pelo chão, pelas paredes do apartamento e os caminhos pelas ruas, pelo centro da cidade, pelos restaurantes, padarias, cafés, pela loja de bugigangas japonesas, pelas travessas, vielas, pontes, periferias. Pelo idílico e o natural, pela selva e o asfalto. Pelo tempo e tudo que há fora dele, irreversível. Pelo que simplesmente é e está ali no suspenso do silêncio. Abrimos os olhos e já é de manhã. É um bom dia para nascer.
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