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Primeira Versão

\\ CRÔNICAS

Ainda tentei me justificar depois — tudo na vida é uma grande besteira, não só o medo do palco. Disse à ninguém.

Por Bruno Pernambuco

Ontem a encontrei por acaso. Estávamos há algum tempo separados, interlúdio de estranha normalidade. Um tempo de corações partidos, sonhos içados na proa do dia, sujeira nos óculos, tempo passando do lado de fora, uma morte escura e de uma intensíssima lua que habitava a calmaria do divórcio que cabia dentro do motivo nenhum.


Estava acossada na prateleira superior, certa e quase invisível. Tinha escolhido casa num cantinho que fugia à organização bibliotecária. Metia-se entre a tortura afogada e as lições da experiência, talvez gostando de repousar sobre o rosto de David Hume e a capa dura das Edições Abril. Naquele momento era toda serenidade. Minha alegria de vê-la só não era maior que a de, antes, não tê-la encontrado. Me senti mal. Ela não estava mais viva em mim naquele longo delírio passado? Ao encontrá-la tinha apartado o abraço com sua falta, e, eu agora temia, também com a minha própria morte.


Senti o azar tomando conta de mim, mas era ele tão perturbado pela razão dos olhos e pela calma acesa na ponta do cigarro que não conseguia me grudar. Era como gotas da chuva tentando agarrar o vento. Agora só restava agradecer o instante aflito da asma. Ainda tentei me justificar depois — tudo na vida é uma grande besteira, não só o medo do palco. Disse à ninguém.


O amor talvez tinha me impelido a escrever algo sobre a história. Me decidi, uma página falando da surpresa do encontro e de mais nada. Nos primeiros haveres com o papel senti que as palavras me saíam todas ao contrário. O medo passava em mim como um dardo, rasgando aquele negativo da paisagem em minha mente. Tentei conformar-lhe às regras que eu tinha decidido — naquele momento eu tinha certeza, eram as mínimas da decência —, mas aí. de repente, já era um sonho em que no lugar dos dígitos do computador à minha frente se apresentava um piano, e minhas mão estavam atadas à música que tremulava minha alma.


Desisti então completamente da ideia velha, e dentro de mim e tracei o réquiem que aquelas notas fariam brotar:


Não escreveria nada a não ser nossa despedida, daqui em direção a toda a eternidade. Olhei-a fulminantemente, abrindo-lhe a situação. O derradeiro contrato de separação, o mandato judicial para que a felicidade nos habitasse cada um em seu canto. A ordem me aquietou completamente, a ponto de não conseguir mais enxergar meu próprio pensamento. Era uma alegria — cuja qual já não a conhecia mais. Estava livre da artéria que me ligava àquele ser que, naquele momento, nunca tinha existido para mim. Diria foi bom, mas que o que precisamos é da liberdade. É claro. Agora voaríamos, e ela também sabia.


Açorado fugi-lhe; buscando com o canto do olho aquele momento em que nosso acordo seria total.


A encontrei me olhando com os olhos compreensivos. Sabia que estávamos sozinhos agora. A porta tinha se fechado docemente. O instante acusava um beijo de paz, trazido por alguém. Estava nu diante ela. Meu reflexo me encarava feito o ingresso perdido na calçada em frente ao museu.


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