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Crepúsculo de um gato

\\ ENTREVERES

Era noite e o vento valsava com as folhas como se estivessem em um salão infinito do maior castelo do mundo

Por Matheus Lopes Quirino


Ella sopra ao meu ouvido um doce canto enquanto vagueio pelas ruas. Sem saber ao certo destino, passeio pelas travessas escuras que se enchem de gatos & saltimbancos. Paro em uma esquina para amarrar os cadarços. Um barulho. Atento, por alguns instantes esqueço de zanzar, encosto em um muro. Era o vento derrubando uma jarra de uma sacada. Fito a lua. Roliça, magma fluorescente, queijo emmental. As primeiras teclas abaixadas pelos dedos finos me dão arrepio.

Está frio hoje, me encolho dentro do casaco felpudo. De repente não tenho pescoço, fico com o olhar baixo, um calafrio toma conta, aperto o passo. Alguém me olha. Quase calvo de saber que sei que a lua toca um bandolim lá do alto. Os gatos farram pelos quarteirões. O vento valsa com as folhas como se estivessem em um salão infinito do maior castelo do mundo. Saio do muro, sinto cheiro de damas da noite, trepadas em uma arandela que já não mais funciona. Havia brilho ali, só que em tempos antigos quando usavam velas para clarear as ruas.

Penso em uma das últimas cenas de Annie Hall, ainda com Ella na cabeça in Moonlight in Vermont. Está acontecendo e eu já sei. Diane Keaton e Woody Allen riem em uma sacada no subúrbio de Nova York, são new yorkers felizes, hippies, intelectuais, deliciosamente sedutores. Penso em Ella cantando Blues em um bar na década de 40, me teletransporto, como um adolescente, de soslaio, risinho tímido, a música de dentro me governa; sigo dobrando a esquina. Todos os faróis estão abertos e corro como Pégaso a encontro com Hércules.

Vagueio e sinto a barra da saia da noite roçar em meu nariz, como uma corista de salões de outrora, onde se tocava Ella, Nina, Doris, Armstrong e Sinatra. Desdou um nó na gravata, visto um smoking preto elegante, abotoaduras e tudo mais. Vagueio por uma praça que tem caída depressão, observo pleonasmos urbanos. Uns choram, uns beijam. Todos tristes. Ronrono, penso no poeta – Carlos, sossegue, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será.

Tiro da cartola um ramalhete, o perco pela vida. O chão está coberto por pétalas de flores e fragmentos de uma primavera que se antecipou em outono. Começou hoje a estação. Fictícia. Passo pelos fios, galhos, calhas, marquises, observo a falação dos bares nos meados da madrugada e da geada. Parto para a estação, onde mil homens entram em trens todos os dias e nunca mais os veremos. As joias da estação florescem dos galhos, cercas e vasos.

Ando com Ella na cabeça, o céu está púrpuro com pontos dourados, já andei quilômetros, meu cachecol está enrolado. Olhos dourados, vagueio, divago, vou devagar, penso, coço o nariz, pelos, alergia. Não entendo nada. Tiro a cartola na esperança de algum coelho branco sair. O cabelo esvoaçante encobre minhas vistas. Posso ser morto pelos carros e homens.

Paro em uma esquina para apreciar o tempo.

As nuvens cinzentas circundam o viaduto rachado por uma via antiga. Ando morro acima, paro por um instante, morro. Os ponteiros param de bater. O coração bate forte pois os passos estão vigorosos, arfante, há tanta poluição na cidade que minhas narinas ardem muito. Meu relógio precisa de bateria. Paro em um ponto. Ando três quarteirões a diante. A noite está encantada por música negra de New Orleans, as nuvens baixas, passo ladeando os muros do cemitério, sinal vermelho. Paro no farol. As árvores estão bonitas e as flores caem e sujam os cabelos das senhoras que debaixo delas rezam uma missa improvisada.

Todos morrem em sequência, como em um sonho ancião, como os primeiros carros morreram com seus donos passados pelo viaduto que caiu. O asfalto está gelado e meus pés doem de andar descalço. Presto atenção em um detalhe ínfimo, já em outro quarteirão, um letreiro antigo ainda pisca, Motel 24 horas. Escuto sons burlescos, passo por uma janela e vejo Salomé, a cigana.

Me dei conta de que estou no centro da cidade, em frente a um antigo cinema de rua. Fechado para virar estacionamento ou qualquer negócio baixo. Olho ao meu redor, a lua ainda está lá, gorda e risonha, os gatos brigam e se amam por brechas, embrenhados na escuridão, zanzando por entre f(r)estas e latas de lixo. Nas sombras, perfumados por incensos , adornadas por rendas baratas, portas entreabertas dos cabarés transborda luz vermelha.

Michês andam em uma diáspora sensual em dueto com a noite e a chama. Homens e mulheres fazem barulho em uma gafieira perto dali. Desejo subir para alcançar a lua, dançar vertiginoso ao som de Ella, na frente deste cinema que não mais existe, descortinar meu próprio filme. No subúrbio como Woody Allen, me entremunhando como os gatos, roçando sem medo do pecado. Beijando a própria noite para nunca mais acordar humano.


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