\\ CADERNO DE ANOTAÇÕES
Da flanela ao flanar, a realidade é um nó que se desdá
Por Matheus Lopes Quirino
Não guardo mágoas de mim, mas às vezes faço um soneto. E tudo começa numa selva escura onde os pássaros farfalham baixinho. Ando pela relva entre carros e motonetas; sou um curumim de botas e fones de ouvido. Caem cometas do céu, vivo um absurdo, assim, sem mais. Lembro-me de atravessar sempre na faixa de pedestres. Paro em alguma portinha e me sento n’alguma mesa que me convide. Olhos nos olhos dourados do meu reflexo no vidro do copo de café vazio. Já amanheceu.
E penso como tenho feito teatro, às vezes até altas horas, vagando feito um tamanduá em busca de formigas. Das que picam, coçam, carregam folhas verdes, alimentam-se de outras formigas, das que têm antenas e presas incomuns. Daquelas que se come em Minas e, de tão duras, estalam como pipoca mal mexida de fundo de pipoqueira, como era antigamente, no tempo das pipoqueiras.
Eu flano, e às vezes amo duas vezes por dia. Soluço um soneto decassílabo para nunca mais cometê-lo em vão momento. Observo o contorno daquilo que sai, metrifico a rima. Tomo chuva miúda que cai das copas das árvores ou das calhas dos prédios. Observo aquele reino tão íntimo se desnudar ali, como quando se observa uma placa virada ao avesso. E vale pensar que existem os que andam (e vivem) plantando bananeira.
Sigo acreditando nos pequenos acasos que os relógios me oferecem com ou sem adiantamentos. Está tudo combinado e as horas fazem duplas certeiras. 18:18, bebida fria no balcão da padaria, 23:23, filme do Almodóvar, 02:02, extrato de melancolia e demais pílulas frias que são guardadas dentro de uma caixinha de metal de balas Barkleys.
Imagino suspenso no tempo a história daquelas tantas formigas, tão diferentes de si. Cismo e penso qual será o trágico desfecho a qual irão sucumbir. Penso na morte por trabalhos forçados, lembro-me de Karl Marx, da Revolução Industrial, de Warren Buffett. Penso também nas que picam e, por consequência astral de uma roda da fortuna (caso as formigas acreditem), ei-las, hão de ser picadas. Serão engolidas pelo próprio tamanduá que é o universo.
Respiro um instante e descarrego três páginas e meia de literatura ruim ao fim das noites boas. O cansaço bate. Olho ao redor do quarto, procuro formigas e insetos que não sejam repulsivos agora no calor. Encontro um característico pesadelo Kafkiano. Levanto-me e saio de um susto, gélido, tropeço no fio do computador e começo um novo texto. Tento ser sério.
Felizes são as formigas que devoram suas colheitas ao final dos dias. E neste comércio de frases prontas e fórmulas homeopáticas de literatura, de história, sou eu mais um escriba terreno que tenta sobreviver com o pouco ordenado dos jornais.
Folhas precisam de formigas operárias, que, por sua vez, são precisadas por tamanduás. Os tamanduás não são precisados. São eles os astros maiores do próprio universo. E eu observo caminhando em uma avenida muito grande e movimentada, lembro do momento exato, o enorme bicho estava estirado no asfalto com a linguinha em caracol.
Pouco sangue, mas foram as lágrimas naquele dia que mancharam toda uma existência em anonimato em alguma selva sem carros e para-raios. O tamanduá, criatura terna e indefesa, ali ficou feito um personagem no epílogo de fim de filme. Ele já está morto, contudo, ainda sim tem sua graça.
Custo lembrar daqueles que assim partiram, com tal zelo, que deixaram para o epílogo o último suspiro. Saio deste pensamento e mergulho em mais uma página no bloco de anotações. O anonimato oferecido pelas padarias de madrugada torna-se um companheiro, não de ofício, de vida. Seguimos a futucar formigueiros.
Formigueiros, vespeiros, cupinzal, tocas, ninhos, entre outros. Viemos do útero para atormentar a vida de alguém. Para amar torridamente e não se importar em enfiar o dedo dentro do cupinzal. Aqui estamos para fazer arte, amor e guerra. Jamais para pintar unha, fazer sobrancelha, empinar bicicleta, esquecer o batom vermelho que, outrora, será motivo de tormenta.
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