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Turistas sentimentais

  • Foto do escritor: Matheus Lopes Quirino
    Matheus Lopes Quirino
  • 12 de jul. de 2018
  • 3 min de leitura

Atualizado: 10 de abr. de 2020

\\ ENTREVERES

Os bancos do centro velho já não eram os mesmos; as intempéries haviam coberto os indeléveis traços daqueles amores perdidos em outras estações

Por Matheus Lopes Quirino


Foi uma surpresa e tanto abrir as janelas do quarto naquele dia nebuloso, pois o ar londrino enrijecia e despenteava os minúsculos pelos entumecidos dos poros das minhas costas, antes mesmo daquele acalorado e vaporizado banho existencial, tomado antes do “café-almoço”. Minha companheira daquela tarde confidenciou que a feita era, no mínimo, curiosa. Logo estávamos tão agasalhados quanto pinguins zanzando nas ruas do centro velho da amada Taubaté, enquanto descíamos aquelas estreitas calçadas, nas pequenas ladeiras íngremes de um lugar que não costumávamos ir nem quando morávamos, de fato, nesse interior.


Aos poucos, os golinhos da fome temperavam as papilas gustativas que escamoteavam os horários cânones de uma rotina saudável. Milk-shake, quiche de aipim, um misto quente engordurado de queijo fresco, com finérrimas rodelas de tomate da padaria do Jarbas ao lado da Igreja do Rosário. Enquanto tomávamos o desjejum, aliviando os excessos das brancas noites do dia anterior, as rédeas da boa educação eram desmilinguidas em um fino debate sobre o sanduíche chegado há pouco: o sr. quer o bauru? Dizia a atendente. Mas não passava de um misto com tomate, como dizíamos em São Paulo. Ela negou, e o taurino turrão, mal alimentado, disse que “na sua cidade” aquilo tinha outro nome.


Enquanto desjejuávamos ali, no centro da mesa de padaria discutíamos – elucubrando com farelos interrompendo nossas falas – os rumos que aquele dia poderia rumar; não por menos nos meteríamos em uma fria n’um outro café, quando a amiga resolveu se satisfazer com doces não tão doces, segundo ela mesma, enquanto nós relembrávamos as peripécias de Ovídio, em A arte de Amar. Um minuto para às 18:00.


E os sinos da outra Igreja, da Praça Dom Epaminondas, badalaram quando o índigo descia o céu depois do sol de pôr. Sem roteiro ou compromisso com horários, observávamos aqueles transeuntes encolhidos em suas capas e jaquetas, num clima até então desconhecido (ou custosamente lembrado na ocasião) mesmo no mês de julho.


Os bancos frontais do cruzamento do bar do Pereba traziam um amor antigo à amiga, lamuriando-se enquanto observava as marcas das intempéries naturais nos corações em repouso naquele encosto público. Não fosse um cão vadio do presente, tormentoso às ideias do escriba, enfastiada, Giuliana torcia o nariz para as lembranças, aos goles pantagruélicos naquele (volúvel) amor improvável de estações anteriores. Sempre em frente, no movediço terreno sentimental, enquanto ilhados estávamos naquele passeio nostálgico, o cronista fez questão de relembrar o que um amigo havia dito sobre termos um arquipélago sentimental, na nossa escalada de relações. Devaneios dignos para outra deixa, se houver.


Margeando o antigo prédio do Colégio Lopes Chaves, tombado pela prefeitura há anos, eis que um desejo delinquente aflorou-se nos corações dos fesceninos amigos que ali andavam. “Até o final dessa temporada vamos invadir”. Imagine só, pular os muros do velho Lopes Chaves, em um desvario gatuno que logo foi dissimulado, enquanto os pedestres olhavam aqueles dois com um ar de reprovação.

Não fossem os filetes de luz do candelabro do dia candentes ainda ali, a provável invasão teria ocorrido. Alguns passos adiante, já no bulevar da Dom Epaminondas, um espírito burlesco entorpeceu aquela dupla de marginais, com todas as aspas possíveis. O sentido literal foi-se quando nem a “citronela bob marleana” havia a calhar às narinas daquele ar cortante e gelado. Estava tudo perfeitamente fora do lugar, como num passado que não foi nosso, mas lá estávamos.


“Não parece que estamos nos anos 1980? ”, sugeriu a amiga, enquanto caminhávamos por aquela clareira de comércios. Bancos vazios, algumas luzes tímidas piscavam, como no natal. Os pombos estavam afáveis, educados, simpaticíssimos. A fila da loteria continuava muito grande, sorte daqueles que receberiam suas provas de existência ali naquele começo de mês. Nós continuávamos pobres e felizes, sustentados pelas grandes esperanças de outras praças há léguas de distância. Ah, o amor!


E com uma razão totalmente submersa naqueles relances hipnóticos em tímidos minutos, já fora do bulevar, dirigimo-nos à rua do teatro Metrópoles, um antigo reduto da diversão mais amadora possível naquelas bandas. Demos com as caras na porta, cheia de papéis: fechado hoje. Alimentados e agasalhados, enfim rimos e saímos correndo dali. Continuamos, precipitadamente, sem destino, topando qualquer suposta loucura naquela  calmaria invernal, pois o inferno são os outros, como diria Sartre.


Pela nossa poesia coada naquele café com trajeto incomum, lembramos dos anos dourados há décadas no então colegial, das grandes esperanças nutridas com nossa caminhada, do que aprendemos amando tudo aquilo que há nas cores, ressuscitando versos de Pessoa e relembrando paixões lascivas de outros carnavais. Dos desafios lançados pela metrópole então agora habitada, tão gelada quanto aqueles dutos do centro velho, os ares daquele cenário nostálgico davam aos sonhadores retirantes, indecisos e precipitados a certeza de que aquele dia seria o começo de um novo seriado.


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