\\ ENTREVERES
Sempre assunto de cabeceira. Ao avô: noites em claro. “Ela parece uma betoneira”. Teria dito certa vez. Ela: nem aí. Continuou suas noites de sono besuntadas por tomadas de plácidos sonhos
Por Matheus Lopes Quirino
Não fossem as discussões e mal-entendidos diários, a prova de amor não seria concreta – e completa. Digo baseado nos anos a fio, como espectador, presenciando ondas de pitacos indecorosos, puxões de orelha, maldizeres e escárnios bobinhos entre aquele casal. Já passou dos 40 (anos) essa união. E consta o ditado popular, neste terreno arenoso das relações de casais, então, alguém (quase sempre) tem que ceder. Água mole e pedra dura. No caso dos dois, houve adaptação ou conformismo naquele lance. Simbiose, talvez, e mesmo, digamos, a sensação de segurança mantiveram-nos juntos, pois os afagos e afetos passam a ser uma utopia passada, far far away. Neste ditado metafórico, quem seria água mole e pedra dura?
Relação: recheada de discussões por motivos tão triviais, eis que meus avós começam um almoço em questão. Ela na cozinha e ele na fala. Mas antes valeu ir à feira do bairro. Hortaliças, leguminosas, peixe e alguns outros ingredientes logo chegaram, acompanhados de alguns espinhos dialéticos usuais: por que você fez isso e não aquilo? Disse ele. É uma cena engraçada o dia da feira, começa cedo: ambos no carro, pequeninos, rechonchudos – mais a avó do que o avô. Pela improvisada leitura labial, à beira da janela da sala, deleito-me em corujices joviais. Uma discussão permeou aquele receptáculo. Eles não pararão até a hora de dormir. É sempre assim.
Cama de gato: cada um em seu quarto. Lembro-me quando a união dos dois ainda dividia o mesmo leito. Comecinho dos anos 2000. Reclamações atrás de reclamações. Barulhos noturnos. Roncos, pigarreadas e derivados. Sempre assunto de cabeceira. Ao avô: noites em claro. “Ela parece uma betoneira”. Teria dito certa vez. Ela: nem aí. Sem esquentar com os lamuriosos cacoetes do notívago e suas encrencas, assim, passaram-se anos: cada um em seu quarto. Essa era pra ser a solução. Mas nem por isso deu mais ou menos certo.
A avó continuou suas noites de sono bem dormidas, besuntadas por tomadas de plácidos sonhos, enquanto o avô, mesmo recôndito em seu quarto, mantinha a triste rotina noturna da insônia, mesmo que acompanhado pela solidão e os afagos de um radinho de pilha, no plantão do alvorecer, escutando jazz & blues.
Como alguém da família Lopes contou-me, custa-me recordar seu nome e parentesco, ambos se conheceram num baile da firma. O avô namorava uma irmã da vizinha. Namorava. Pretérito, se me permitem, perfeito, no caso deste enlace. Logo ao observar o broto de canto, capaz que ele tirou ela para dançar. Era minha avó. Se entrosaram, digamos. E daquele tango em San Pablo, anos mais tarde vieram da cegonha três crianças, em um intervalo de década. Tórrido amor! Oh.
Brincadeiras à parte, meu ceticismo caçoa do efervescente adjetivo. Conta-me, dessa vez a avó, de uma das primeiras sessões de cinema que ambos se refestelaram, nos anos 1960, onde o avô, entusiasmado com a sessão e o amor, nesta ordem, chamou-a para assistir o romântico longa Um dólar furado. Clássico do gênero bélico, estrelado pelo cowboy Gary O’Hara. Tórrido amor!
Na vez da manceba, eis que a sessão de O Vento levou os esperava. E conforme o enredo esquentava as fileiras do cine Paysandu, enquanto a avó se derretia aos castos beijos dos protagonistas, seu namorado, desinteressado naquela paixão cinematográfica, não menos tórrida que a deles, claro, este deu as costas para o telão. De lá para cá, viu-se que os encontros no cinema minguaram, e hoje, portanto, vê-se estas lembranças conservadas em bordoadas sentimentais, um tanto ressentidas, mesmo via estes diálogos com o passado e duas delícias dos cinemas da época.
Além das telonas, na tragicomédia mundana, a cada aniversário, de ambos, sempre há um gesto carinhoso. Um dedo do meio ou algo do tipo. Nas tardes de sábado, quando juntos fazem digestão em frente à televisão, na busca por um programa paliativo ao tempo ocioso, como Largados e pelados, a discussão de ambos brota pelo controle remoto, pela altura da televisão, pelo maldizer dito no almoço, o episódio repetido, o suco muito adoçado e a carne salgada. Ele tem diabetes e ela pressão alta, ele se preocupa, ela come! Discutem por isso sempre que podem, mesmo quando embaixo daquelas mantas nos frios dias de julho, calçados pelas meias costuradas por ela, os pés dos dois se entrelaçam, pois já faz mais de quarenta anos que a rotina se cerca dessas bordoadas de afeto.
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