\\ ALEXITIMIA
A juventude prefere botar o corpo para jogo: experimentar línguas e sensações, absurdamente inimagináveis para crianças bem-comportadas do século passado. Será?
Por Lia Petrelli, com comentários de Tomás Negreiros e Diogo Maia
Boca a boca é o novo bicho-criatura de Esmir Filho. Eu e Tomás Negreiros, que também escreve aqui na Frentes Versos, compartilhamos visões durante a construção do texto que você está prestes a ler, então se prepare para comentários amarradinhos.
Dentro da Netflix, a série ganha vida na cidade de Goiás. Progresso, ironicamente, sim, é o nome da cidade. O tom de ironia perpetua nas imagens. A cor da fotografia mostra o apaziguamento da sociedade e os corpos em revolta das personagens que moram na Vila, espaço afastado da “civilização”.
É bastante didático o sentido de tudo isso: um vírus que se transmite através do beijo e as inutilidades sociais que acarretam o medo do amor. A exploração sexual não é tabu só dentro da tela. Muitíssimo pelo contrário: desejo, sexualidade, exploração, medo e incertezas são diferentes facetas de uma mesma narrativa.
Personagens vividos por grandes atores, são silenciados na alçada retrocedida de Progresso. Carminha Nero (Bianca Byington) e Doni Nero (Bruno Garcia) estão no epicentro do silêncio, crime, valores e família. A começar pelo fato de a família Nero ser proprietária da fazenda que move Progresso por inteiro, e da cidade se dividir entre Colônia e Vila.
As visões distanciadas entre pais e filhos são gritantes na construção deste núcleo. Alex Nero, vivido por Caio Horowicz, encara o peso de ser vegano mesmo vivendo dentro de um matadouro. O silêncio das vontades adolescentes também balança as visões costuradas.
E foi bem por aí que comecei a notar algumas críticas sutis, e outras nem tanto, que constroem a série, quando logo no terceiro episódio a fala de Doni Nero me chamou atenção e passei a ver a série como uma denúncia sobre o governo brasileiro.
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Conforme lembrado por Tomás, o sobrenome “Nero” aponta para o lugar de poder ocupado pela família na dinâmica da cidade. Mais do que isso, o sobrenome diz muito sobre a origem e os responsáveis pela bactéria que, propagada pelo beijo, “incendeia” os corpos dos jovens de Progresso. Tal suspeita se concretiza nos últimos episódios da temporada, quando Alex contrai a bactéria após entrar em contato com um dos bois geneticamente modificados do rebanho Nero.
E por falar em bois, a simbologia do boi, do touro, do “gado” (que é constantemente explicitado na série) é dúbia o bastante: pode ser um animal muito dócil, mas há a possibilidade de ser extremamente agressivo. De qualquer modo, é um animal que nos remete constantemente à sua força, ao seu instinto, àquilo que há de mais passional e incontrolável tanto dentro dos animais, quanto dos seres humanos.
No início de um diálogo que faz Alex rever seus próprios conceitos, Fran (Iza Moreira) diz ao garoto que “Você só olha para o seu mundinho [...] Minha mãe e eu estamos correndo risco de perder a nossa casa porque seu pai acha que a gente mora de favor na fazenda. Sabia disso?”
A partir daí as tensões familiares estão lançadas. Questionado por Alex sobre a expulsão da família de Dalva (Grace Passô) e Fran da Colônia, Doni responde secamente: “Alex, você sabe como é que funciona. A gente dá moradia, mas eles têm que trabalhar, e a Dalva, coitada, vive com dor pra lá e pra cá. [...] Não esquenta não, Alex, deixa que eu resolvo isso, TÁ OK?”
Voltando rapidamente aos bois, tomando como premissa esse jargão que cita sutilmente o então presidente da república, Tomás comenta o fato de que a esquerda política tem o costume de apelidar de “gado” os apoiadores do mesmíssimo presidente: as pessoas que aceitam o que lhes é imposto sem questionar coisa nenhuma, apoiando cegamente tudo aquilo que é ordenado pelo “Líder”, partilhando dos mesmos delírios e fantasias fascistoides. Sãos os “gados” (animais e humanos), aqueles que agem em manadas, guiados pelo berrante, caminhando em direção ao abate.
A escola dirigida por Guiomar Araújo (Denise Fraga) é o centro de proibições, a começar pelo próprio nome: Escola Modelo, seguida pela paleta de cores mortas enquadradas. Não se sabe o que é aluno, ou o que é parede. Tudo parece limpo demais, remetendo a uma escola militar versão agrônoma; isto é, uma instituição de formação estritamente técnica, que mantém homenagens aos antigos figurões da escola (no caso, o avô de Alex). Sem esquecer do método bizarro de “extrair a verdade” dos alunos, quando a diretora os coloca sentados numa bola de pilates - mencionado pelos alunos como o detector de mentiras - já que uma vez desconsertado, o corpo adolescente que mente ou esconde, tente a se desequilibrar em cima do objeto.
Ainda assim, as amarras sociais parecem se acabar junto com a aula, quando as personagens preferem imergir e explorar o mundo tecnológico sem segredos, em uma plataforma muito semelhante ao Instagram, manipulado de forma óbvia para quem circula com destreza estes campos, como mostra Manu Araújo (Esther Tinman) - que não tarda a ser desmascarada por Chico (Michel Joelsas), no mesmo terceiro episódio onde se encontram as críticas ao governo.
A juventude prefere botar o corpo para jogo: experimentar línguas e sensações, absurdamente inimagináveis para crianças bem-comportadas do século passado. Será?
Acho que é sempre assim que vem a mudança: os corpos em revolta [ref. Thomas Hanna] das gerações que nascem a cada dia puxam a realidade para preocupações outras que não são o malhar do corpo em academias fechadas.
Aliás, dentro da série, uma das cenas que puxou minha atenção foi o fato de Tomás (Flávio Tolezani) ler a Bíblia em voz alta, claro e bom tom, para todos que quiserem ouvir, obrigatoriamente, dentro da academia, enquanto semblantes cansados malham freneticamente para deixar o corpo retilíneo, em forma “perfeita” [ref. Pierre Levy – o que é o virtual]. Há teorias contemporâneas que defendem justamente isso: as academias hoje são a religião social aceita.
Voltando sempre a depositar enorme contraste em tabus sociais, Chico à primeira vista é só o garoto-problema que veio da cidade grande, e só por isso chama atenção dos nativos de Progresso. A começar pela compreensão sexual do personagem, que não prefere homens ou mulheres, mas que acaba por desenvolver um relacionamento amoroso com Maurílio (Thomás Aquino), que além de ser um homem muito mais velho que Chico, também é negro e chefe do rebanho da fazenda Nero. O que ninguém esperava era que o sentimento entre os dois realmente renderia um romance proibido.
Confesso que quando terminei de assistir a série estava extasiada pela construção que habita agora as telas dos assinantes da Netflix – a princípio por ressaltar atores jovens e não os de renome, que tem o lugar do passado, realmente –, mas postando no Instagram sobre a alegria de ter tido a possibilidade de ver a sexualidade finalmente bem representada na produção de Esmir Filho e Juliana Rojas, topei com contra-análises de colegas que se decepcionaram com a série, me enfiando parafusos que não havia enxergado antes.
Diogo Maia me apontou o fato de algumas questões serem tratadas com certa superficialidade, inclusive pelos figurinos que, na visão dele, pareceu uma “tentativa de espelhar produções norte-americanas e europeias” (nas palavras dele mesmo, muito embora eu ainda enxergue isso como uma crítica afiada), acrescentado à representação mundana da juventude, quase que numa "gourmetização de BraZil", tendo sido isto o que realmente incomodou meu colega.
E, precisamente, esse último comentário me fez questionar minha própria criação privilegiada – sendo habitante na Zona Sul da cidade de São Paulo. O que não é de todo ruim, muito pelo contrário: inclusive passei a pensar o lugar das críticas (mas isso é papo para outro texto).
Agora, puxando para a psicanálise, que é a área que domino quando assisto a filmes e séries, notei que o vírus que acomete os corpos jovens de Progresso tem muito da depressão – a falta de vida que passa a habitar os corpos e a necessidade do calor para que se recuperem. Mais ainda quando, os responsáveis pela cura dos adolescentes precisam, necessariamente, vir dos pais e das boas memórias que abraçam o universo de cada núcleo familiar. O canto, as antigas canções de ninar, conforme relembra Tomás, também tomam parte nesse processo de cura; canto este que, calmo e reconfortante, destoa da versão agitada e angustiante de “Boi da Cara Preta” que toca nas cenas que rememoram à festa onde ocorreu a primeira “contaminação”.
Assim sendo, também não pude deixar de notar o fato de que o personagem Chico – o único com a sexualidade bem resolvida – não é afetado pelo vírus, e sim pela sociedade, que resolve botar o garoto dentro de um hospital nas últimas cenas da série, que já anuncia a continuidade da produção. Isso, sim, achei genial, afinal, somos todes passíveis de cair na depressão, principalmente na faixa etária das personagens de Boca a Boca – que tem seus 17 anos, talvez menos.
Também vi a relação que Esmir e Juliana abordaram ao conceder à Vila a cura através de extratos florais. Numa cena do quinto episódio a mulher responsável pela aplicação do óleo, que serve como cura para a contaminação, explica: “A síndrome age nos sentidos. Gera falhas no mecanismo do afeto. Corta a trilha dos sentimentos, impedindo as emoções de virem à tona. A piscina é aquecida na temperatura do corpo. A água salinizada age na gravidade diminui a pressão para potencializar os efeitos do óleo. [...] Vai ajudar a processar os sentimentos estancados. O que deixa os jovens em sobrecarga e apáticos.”
Durante o processo, ao ingerir a substância, os sentimentos responsáveis pelo abatimento surgem na tela. O transe poético acontece quase como se as personagens fizessem as pazes com o passado, fazendo com que a relação com o mundo externo se potencialize através de uma tonalidade afetiva quente (ganhando vida pela fotografia) que vai além daquela paleta de cores cinza-anêmica que acomete os corpos dentro do hospital.
A água também tem enorme sensibilidade nesta construção, uma vez que o arquétipo deste elemento diz sobre o contato com sentimentos. Constantemente os praticantes da meditação recomendam que utilizemos vasilhas com água para conexão de profundezas emocionais submersas no inconsciente, além do som, que se propaga em eco pelas águas.
A parcela renegada de Progresso parece estar mais desenvolvida na tecnologia medicinal do que o próprio hospital – partindo da dúvida de Dr. Tadeu (César Mello) sobre a eficácia de tal óleo que cura Fran e é levado por Dalva até a Colônia; desmistificando a ciência que sempre procura provas e, para isso, também pode colocar em risco as vidas dos jovens. Com a bateção de pés dos próprios pais, o médico é obrigado a ver a eficácia na prática mesmo, uma vez que não há tempo para que testes laboratoriais sejam efetuados.
Não te lembra também a população indígena que pouco se utiliza da medicina farmacêutica para curar enfermidades da carne ou psíquicas? A parte social que o governo insiste em tratar como não desenvolvidos o suficiente, e os trancafia para fora do país, mesmo estando a poucos metros da “civilização”?
No último episódio da primeira temporada, logo após a última festa que os jovens frequentam, a escola é tomada por cores fora da paleta pastel, mostrando a compreensão da sexualidade de alguns dos alunos, que passam a vestirem-se de acordo com a personalidade que, antes, parecia ser coibida.
Somando a esse processo de aceitação, os jovens protestam através da criação artística. Alguns recortes mostram a produção de lambe-lambes no pátio.
A sexualidade, quando devidamente aceita, impulsiona o universo criativo - é daí que nasce a arte - a liberdade e a vontade de fazer com que suas vozes sejam enaltecidas mostra a importância do livre descobrimento já que, assim como Chico, as personagens que protestam, não estão infectadas.
Para fechar essa breve leitura sobre a série, reforço a importância de ter atores emergentes ressaltados produção de Boca a Boca, e também, aproveito para elogiar a fotografia, que foi se construindo durante os episódios com cores intensas e bem coerentes para cada cena (brincando principalmente com o azul e rosa, famoso na fala da ministra brasileira do atual governo), acrescentando as possibilidades analógicas que ganham força na produção: as cenas com papel celofane que rebatem a luz e colorem a tela por inteiro, é um espetáculo ocular.
Se você concorda com tudo isso, ou não, fica a seu critério, já que aprendi com meus colegas que as visões que nos atravessam são sempre únicas e individuais, mas que quando partilhadas podem fazer com que questionemos a nós mesmos, como cutuque necessário, assim como Boca a Boca me cutucou.
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