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Foto do escritorMatheus Lopes Quirino

Aquele mau funcionário

\\ ENTREVERES

Mesmo sendo mau funcionário, temos uma afinidade quase libidinosa quando o assunto é a crônica

Por Matheus Lopes Quirino

Pode soar um tanto brega – mas que badale em pieguice. Venho hoje com um clichê, desses prontos, a rodo, vendidos em pilhas de livros de autoajuda, em capas blasés (e incrivelmente chamativas aos olhos de outros): não deixe para fazer amanhã o que se pode fazer hoje. É isso que esta deixa trará ao leitor. Ciente estou de seu caráter comezinho, mas o processo foi demasiado dificultoso. Chegar à aceitação desses termos, mais precisamente no plural da frase anterior, pode-me custar uma enxurrada de críticas, não menos ruidosas do que os silêncios que sobram quando certos cronistas passam uma semana sem meter o bedel em seus espaços.

E aconteceu. O editor desta revista, um workaholic, porventura meu homônimo, anunciou-me uma folga repentina. Contrariado, vesti a camisa e não engoli fácil. Pois aos domingos ocupo alguma bandeja de alguma casa — embora ande azafamado com esses almoços dominicais e sua mesa característica (Penso naquele frango suculento e cinematográfico como a boa crônica) –, resolvo, assim, persistir nesse afã de “comer com os olhos”, sempre procurando não servir fel aos leitores, embora não seja possível agradar paladares diversos — há quem diga que a crônica nem é um gênero literário. Não tem almoço grátis.

Outro clichê que não poupo nesta deixa antecipada. E lendo um texto sobre Rubem Braga, o cronista diário mais celebrizado destes trópicos distópicos, eis que me veio a deixa, não menos atraente como os vícios do editor, workaholic. Ele me acha um mau funcionário, embora possuamos uma afinidade quase libidinosa quando o assunto é a crônica, e partilhamos também tal sintoma da inquietude.

Honrando meu contrato, ligo para o sujeito às duas da manhã desta quinta-feira. Aqui vai nossa conversa, enquanto este cronista comia, ansioso, bolachas maisena na cozinha, andando de lá para cá, de camisa social e calça Lee, no ápice do êsmo editorial:

Aakcjkfcnefj

— Fala, Matheus… são duas da manhã e você me vem com esse crecks insuportáveis…

— Eu sei, mas eu tenho o tema dessa semana…

— Mas eu não te dei uma semana a mais para pensar direito?

— Meu caro, eu preciso de treino. Ficar uma semana no armário da maturação de nada adiantará. A crônica só florescerá com o método e, embora domingo esteja fora de questão, é justamente isso: não deixe para fazer amanhã o que se pode fazer hoje…

— É sério isso?

— Com toda certeza! — Matheus, você está na privada?

— Já passei por ela…

— Pense bem, esquematize, dê um descanso pro texto, monte um roteiro, você anda um pouco perdido…

— Matheus, você sabe que eu ando perdido. Que eu me lamento diariamente e que queria escrever igual ao Sabino, mas esse será o tema de amanhã, inclusive o título…

— Pelo amor de Buda, vai dormir Matheus, são duas da manhã. Escreve pra sexta-feira, mas arruma esse texto e para de usar essas suas palavras gordas e pomposas, às vezes não lhe cai bem…

— Mas..

— Eu conheço esses seus hábitos, Matheus…

— Como fritura?

— É como fritura… Depois vem a parte do vaso e você libera aqui na Veredas. Faz o seguinte, arruma isso que você tem para a quinta-feira e me entrega no sábado. Já que você não aceita buracos…

— Depende do buraco (ri, introduzindo humor à rabugice do outro)

— No calendário, Matheus, e eu estou de péssimo humor uma hora dessas. Me deixa dormir, sei que sou mais seu amigo do que editor, mas você anda abusando da minha boa vontade ultimamente…

— Mas, Matheus, justamente, meu caro. Você me chamou pra essa revista semanalmente, não quero folga…

— Mas você sabe que não vai receber? Já tivemos “aquela” conversa, meu jovem cronista. A revista está quase se desgrumando… Um deles é o ordenado, por favor, compreenda…

— Tudo bem, mas mesmo assim vou mandar o texto, e hoje.

— Como você é ansioso!

— E você vem com essa de desgrumar, fui no dicionário etimológico…

— Tudo bem… mande, mas desta vez não na madrugada

— Eu não posso evitar

— Ai, Matheus, se a gente não fosse tão grudado eu demitiria você e contratava um cronista melhor…

— Ninguém iria querer trabalhar pra você, Matheus, e nem para esta Veredas. Você é um editor chatérrimo, critica tudo o que eu escrevo. Barra minhas reportagens, resenhas…

— Acertamos que você ficaria com a crônica no domingo. Temos outros articulistas…

— Quando há.

— É, a coisa tá feia, Matheus, só você pra segurar essa barra de domingo mesmo, aliás, troca esse clichê, você vai colocar isso como título mesmo?

— Não sei. É muito ruim colocar: “Não deixe para fazer amanhã o que se pode fazer hoje”?

— É péssimo. Tão decrépito quanto aquelas gôndolas de livros de autoajuda que ficam nos postos de estrada…

— Tudo bem, vou pensar em algo mais criativo…

— Pense em algo menos criativo, não rebusque tanto, ando recebendo muitas críticas, pertinentes até, de que você não sabe muito bem o que diz…

— Mas só você me crítica, Matheus, só você me lê… (Ri alto em suas orelhas, do outro lado do espelho negro)

— Pare de se depreciar…

— Está bem, sr. editor…

Cazzo

— Mas têm palavras…

— …que só elas podem dizer aquilo

— Na língua portuguesa (disseram os dois)

— Tá bom, Matheus

— Matheus, eu tive uma outra ideia. Mudar a prosa para um diálogo…

— Você já fez isso antes?

— Não…

— E se der merda…

— Ah, os meus quinze leitores, quando lerem, vão ter que ter paciência. Eu estou expert em vaso ultimamente…

— Vai ficar vulgar, Matheus, você não é o Veríssimo, é um cronista de quinta

— E que dia é hoje?

— Não tem graça. Já disse que você vai precisar reencarnar umas três vezes, no mínimo, pra vir com essas piadinhas de Sabino…

— (mudo)

–Eu tento fazer o meu melhor. E agora vou dormir

— Já estou batendo a crônica na máquina

— Não faça lambança dessa vez. Ou faça menos…

— Já tenho uns nomes para a crônica

— Quais?

— Aquele mau funcionário ou Lamúrias telefônicas de um editor

— Mas é o cronista que está se lamuriando. E esses títulos são horripilantes. Vou desligar para ter pesadelos.

— Somos nós…

— Vou publicar só na sexta

— Beijo, querido.

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