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Análise poético - crítica de El Hoyo, Galder Gaztelu-Urrutia

\\ ALEXITIMIA

Filmes como El Hoyo apresentam um poder inabalável ao construir discursos necessários para os momentos ferozes que temos vivenciado enquanto sociedade global.

Por Lia Petrelli

El Hoyo, de Galder Gaztelu-Urrutia (2019)


O Poço, filme de 2019, se difunde no Netflix no dia 06 de março de 2020. Não é de se admirar que logo agora a plataforma tenha o publicado. Repensar os movimentos sociais que nos cercam com certeza é o movimento que os diretores da empresa escolheram fazer, poética e artisticamente.


Mesmo sendo abordada majoritariamente como uma metáfora sobre os terrores do sistema capitalista, a estreia do diretor Galztelu-Urrutia não para nesse apontamento, se o espectador tiver olhos afiados para enxergar as figuras de linguagem visualmente aparentes do filme.


Este texto apresenta uma leitura analítica sobre os símbolos que ressoaram nesta que escreve, de ponto de vista psicanalítico e artístico. De antemão posso adiantar que as leituras político-sociais são obvias o bastante para que discorra meramente sobre estas. O enfoque desta leitura passa a ser a própria estrutura mental do personagem principal, Goreng (Invan Massagué), que serve como estruturação do cidadão classe-média contemporâneo, atuando como o Pré-Consciente – parte da primeira tópica do aparelho psíquico, sendo a parte ausente da Consciência que pode ser acessada sem resistências ou repressões internas. O sadismo exposto no filme revela vontades e desejos humanos, quando estes estão sob pressão extrema, além da sobrevivência bem disposta no longa, que também são instâncias participantes da pré-consciência.



Trimagasi se alimentando enquanto Goreng o observa enojado


Logo nas primeiras cenas tomamos conhecimento visual sobre o funcionamento do lugar: verticalizado com um furo no meio, onde não se pode ver o topo ou o fundo. Os andares, empilhados, causam sensação nauseante, misturando a visão da câmera com a perigosa ação dos personagens que se aproximam das bordas. Apesar da estrutura ser vazada e poder existir a conversa entre todos os participantes do Poço, as regras – que ninguém sabe de onde vêm – são bastante claras: não se pode falar com os de cima, porque estão a cima, não vão escutar; assim como não se pode falar com os de baixo, afinal, você está acima deles. Esta estruturação me levou a pensar sobre o funcionamento Consciente – Inconsciente, uma vez que as memórias recentes têm mais poder sobre nosso comportamento no dia-a-dia, sendo acessadas facilmente pela mente acordada.


Fartura de comida, nível 0


Existem três tipos de pessoas. As de cima, as de baixo e as que caem”, explica Trimagasi (Zorion Eguileor), o primeiro companheiro de cela de Goreng. Nos primeiros minutos do longa entendemos que nem todos estão ali por livre arbítrio, ou por escolha – ponto que o diretor explora durante toda a construção do filme, já que cada novo participante do Poço pode escolher um objeto que quer carregar consigo durante o tempo de permanência; juntamente com outras figuras de linguagem que reforçam essa postura de escolha-atuação.

Não há janelas, óbvio: o Poço é uma prisão e o objetivo é comer (ou seja, armazenar energia – dentro da Soma e práticas orientais, é a comida que provêm toda a energia que possibilita o funcionamento do corpo). Toda a comida chega através de uma plataforma, que começa do nível zero e vai descendo de nível a nível, a cada dois minutos. Toda a comida é a sobra do que vem de cima e não se pode “guardar para depois”, sob punição dos condenados serem fritos ou congelados, caso a comida não seja devolvida ao nível de baixo.


A trama começa no nível 48 o que, aprendemos, não é uma posição ruim, afinal, só 94 pessoas comeram antes dele. A posição do nível das pessoas é totalmente arbitrária e rotativa, não sabemos quem faz essa mudança dos níveis, nem como essa escolha se dá. A cada 30 dias, os condenados acordam em um nível diferente, possibilitando que todos tenham uma “condição igualitária”. É aí mesmo que mora o perigo: o armazenamento de energia é necessário frente ao medo de acordar em um nível baixo demais, logo, as pessoas que estão nos níveis de cima comem desesperadamente, temendo o que pode vir a acontecer no próximo mês.



Trimagasi lê "Dom Quixote" enquanto empunha sua faca


A atuação de pré-consciente de Goreng ali instaurada começa a ser abalada quando decide discorrer sobre o objeto que escolheu levar consigo para o Poço: um exemplar de Dom Quixote, de Miguel Cervantes, que participa do filme com algumas inserções sonoras de partes decisivas do romance. O pânico ataca o personagem principal quando Trimagasi conta a história do objeto que traz para o Poço: uma faca que se afia sozinha, a cada corte. Entendendo que os níveis mais baixos não possuem comida alguma, Goreng passa a temer por sua vida e seu comportamento muda, se tornar amigo do companheiro de cela passa a ser prioridade. No entendimento psicanalítico, o pré-consciente é justamente a estrutura mental que resguarda o Super-Ego – proviniente da segunda tópica, provedor dos comportamentos de auto-preservação dos indivíduos.


Antes da violência deve haver o diálogo, caso nada aconteça, a violência pode ser válida.

No mês seguinte, Goreng acorda amarrado no nível 200, ainda ao lado de Trimagasi, quem pretende purificar a carne do personagem principal antes de consumi-la. A salvação vem de uma figura feminina que já aparecera na tela momentos antes: trata-se de uma mulher que procura por seu filho, descendo todos os meses junto a plataforma da comida. A personagem não só desamarra Goreng de seu destino inusitado como oferece a faca de Trimagasi a ele, para que o desfecho possa ser completo. Mais uma vez o livre arbítrio e a escolha são sutilmente mencionados, desta vez iluminando a aura da sobrevivência através do terror, já que a figura feminina é, ao meu ver, a pulsão-de-morte – que nos mantem vivos durante os momentos de terríveis desconfortos; a parte de nós que resolve matar as partes que já não nos fazem sentido. Matando ao invés de ser morto, o personagem passa a personificar partes de seu antigo companheiro através de alucinações, podemos entender essa introjeção através da palavra “óbvio”, que passa a fazer parte do vocabulário de Goreng.


A segunda companheira de Goreng, Imoguri (Antonia San Juan) vê o Poço com diferentes visões de seu antigo companheiro: a ideia da personagem é conscientizar as pessoas do poço a comerem somente o necessário, para que a comida possa chegar aos níveis mais baixos, eliminando a competição que se torna sagrada. “Somente uma solidariedade espontânea pode trazer mudanças”, diz ela, citando o livro de Cervantes e servindo como bordão para a personalidade que constrói essa personagem. Uma vez que somente o medo pode responder a altura da mudança de comportamento dentro do Poço, Goreng, já tendo consumido a carne de seu ex companheiro de cela, ao falar com os condenados do nível abaixo adere a falas do mês anterior quase como que citando Trimagasi. As falas surtem efeito imediato, óbvio. Demonstrada a necessidade do consumo do Outro – paralelo comportamental de Marketing Destrutivo, presente no viés capitalista –, como ponto crucial para o encontro das figuras de linguagem, observo a faca como símbolo da agressividade necessária que encontra as figuras femininas que carregam solidariedade, fantasia e paixão; afinal, os seres humanos são compostos dessas duas instancias que se equilibram: o masculino e o feminino.


Personagem que procura por seu filho


A cena que demonstra a segunda passagem de Goreng para os níveis mais baixos começa com sua companheira de cela morta, oferecendo seu corpo como alimento, fomentando ainda mais seu posicionamento social perante toda a situação.

Quem o impulsiona a comer o corpo de sua ex-companheira é justamente o fantasma de Trimagasi – a personificação do lado fortificado da personalidade de Goreng. Recuperado, Goreng acorda no nível 6, acompanhado pelo primeiro personagem negro do filme: não ao acaso, suponho, já que o companheiro de cela tenta conversar com os prisioneiros que estão acima dele para que ele possa subir, com intuito de escapar daquele lugar. Como já aprendemos nos primeiros minutos, os que estão acima tem ideias completamente egoístas em relação àqueles que estão abaixo. Num plano carregado da introjeção da carne que acaba de comer, Goreng propõe um ato solidário que, teoricamente, faria com que os comandantes, situados no nível 0, vissem que a estrutura “funciona”, ou seja, todos os níveis estão sendo alimentados. A partir daí uma nova trama acontece: chegar aos últimos níveis alimentando todos os presentes, visando o “bem maior” que seria a utópica ideia de libertar todos da prisão infernal – mas isso, claro, é a visão egóica de Goreng, que também está farto de lutar por sua sobrevivência no local.


Demonstrada a necessidade do consumo do Outro como ponto crucial para o encontro das figuras de linguagem, observo a faca como símbolo da agressividade necessária que encontra as figuras femininas que carregam solidariedade, fantasia e paixão.

Na descida, a segunda figura negra aparece: a personificação de um mestre espiritual informa aos personagens de que os comandantes precisam de um símbolo. A única comida intacta da plataforma precisa ser preservada, assim como o diálogo. Antes da violência deve haver o diálogo, caso nada aconteça, a violência pode ser válida. Proteger a comida – a energia –, a panacota, torna-se prioridade.


Os personagens chegam ao fim do poço, encontrando o último símbolo essencial para o fechamento do filme: a criança que tanto era procurada pela primeira figura feminina – esta carregada de agressividade e preservação, mesclando o masculino e feminino aparentes dentro do comportamento humano.



Goring observa Trimagasi enquanto este dorme com sua faca

A comida, servindo de alimento para a criança, se perde e a própria criança passa a ser o símbolo essencial para que os comandantes entendam a loucura que acontece dentro do Poço; uma vez que foi Imoguri quem alertou Goreng de que seria impossível que existisse uma criança ali dentro, sendo esta uma falha intensa no sistema desenvolvido. Sendo assim, o objetivo muda: agora é importante que os comandantes do Poço entendam que a estrutura é falha e, assim, o fechamento do lugar seria definitivo.


A plataforma que leva a comida, pouco a pouco para todas as camadas do Poço, sobe de uma só vez, caracterizando a pulsão, o desejo, a vontade que emerge do Inconsciente instantaneamente quando lembramos de coisas que há muito foram soterradas para as mais obscuras partes de nós.


A criança que tanto era procurada pela primeira figura feminina – esta carregada de agressividade e preservação, mesclando o masculino e feminino aparentes dentro do comportamento humano.

Tendo exposto todas as figuras de linguagem que o longa carrega, devo deixar minha opinião expressa de forma linear. Depois de assistir algumas vezes, o que continuou tendo maior voz foi a relação gritante da estrutura do Inconsciente que busca o valor da criança para que o comportamento do adulto possa mudar radicalmente. Os personagens escolhidos são os símbolos renegados da sociedade: o velho, a mulher, o negro e a criança, que pulam pouco a pouco para a visão do espectador, carregando valores sociais explícitos de cada figura. A dureza do pensamento antiquado ganha sutileza quando se depara ao discurso da mulher; a magia das figuras negras ganha força quando em luta por igualdade – que tem um bem maior por trás: a liberdade.


Filmes como El Hoyo apresentam um poder inabalável ao construir discursos necessários para os momentos ferozes que temos vivenciado enquanto sociedade global. A mensagem que fica é a de olhar para dentro, para o fundo do poço, tentando compreender onde está o essencial para a sobrevivência em momentos delicados como os de agora.

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