\\ CONTOS
O caminho para casa, para o nada que aguarda em anseio. Já pensou em arrumar um cachorro, mas parecia covardia condenar o animal à solidão.
Por Giovana Proença
“Não vou ficar.”
Responde ao passageiro com timbre calmo, enquanto recebe as notas amassadas com indiferença. Um agradecimento rápido e ele sai do carro sem cerimônias, troca a essência do aromatizante de lavanda, achado de uma liquidação na semana passada, pelos esfumaçados ares do eixo Paulista. Nenhum sinal de reconhecimento. Ela segue a valsa do esquecimento e tampouco menciona seu passado comum. A distância rarefeita entre a posição de motorista e o banco traseiro era o abismo da desmemória.
Não trocaram palavras fora das formalidades, a constatação fere seu orgulho feminino. Os padrões das ruas sucedem a visão pelo para-brisa, o vidro que a separa do resto do mundo. Avança o roteiro entre túneis e viadutos. O centro da cidade abre em leque, a linha de prédios antigos e monumentos.
O semáforo marca a esquina. Costumava ter medo de trafegar à noite, hoje deixa os temores se esvaírem com a fumaça do escapamento, desfazendo-se ao longe.
Essa esquina era um café-bar. Depois foi uma padaria. Hoje é uma drogaria de rede.
A sombra do último passageiro pesa no carro. Se lembraria de quando passavam horas no café-bar daquela esquina? O moço de camisa florida e ideias libertárias. Cachos que caíam em cascata até o maxilar bem desenhado. Deitavam lado a lado no tapete ao som de Caetano, Gal e Bethânia. Primeiro, muito próximos. Aos timbres da desilusão, se afastaram em centímetros, tão mínimos, que não pôde perceber até ver a silhueta atravessando a porta, na vista da meia luz que vinha da janela.
Se lembraria ainda? O desolador intervalo entre duas canções repetiu o desconforto da viagem. Encontrou-o em Pinheiros. “Para a Paulista”. Travessia. Cruzou o quarto para a saída. Travessia. O antigo militante comunista trabalha em um banco. “Você pode esperar? Vou pegar uns documentos, preciso de um táxi para casa. No máximo uns cinco minutos.”
“Não vou ficar.”
Não existe dia mais típico do que a terça-feira. Gente na rua, carros no trânsito, a novela que começava. Todas as casas do subúrbio sintonizadas na mesma cena, para enfim descobrir quem matou a vilã. Um verão com cara de outono, as folhas secas desprendem dos galhos e salpicam o carro enquanto cruza a avenida. O caminho para casa, para o nada que aguarda em anseio. Já pensou em arrumar um cachorro, mas parecia covardia condenar o animal à solidão.
O caminho tão guardado em conhecimento chega a ser esquecido. No automático, sem contar em cada uma das esquinas, os nomes das placas que levam às paredes que habita menos do que a rua. Mas ainda chama de casa as horas vazias que equilibram o dia cheio. Foi o homem de terno atrasado para a reunião em Higienópolis, a moça ansiosa para chegar ao cinema, o universitário atrasado, a mulher ruiva que lutava contra as lágrimas, o senhor de bengala com as fotos dos netos na carteira, e o homem que conheceu nas camisas floridas e desconheceu no trajeto. “Até ele teve mais um pouco de mim.”, medita enquanto abre o portão. Chegou em casa, hora de renunciar ao controle das mãos no volante. Entra na sala absorta no questionamento: Amanhã, quem será?
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