\\ ENTREVERES
Não faça amor, faça guerra! Poderia ser um slogan de qualquer coisa hoje em dia, se já não houver
Por Matheus Lopes Quirino
Quando o céu está cinzento, guarda-chuvas se abrem, pessoas começam a se encapuzar pelas ruas. O sopro frio percorre a longa avenida. Não cai uma gota. É só impressão. Todos continuam no ritmo do congestionamento da maior cidade da América do Sul. Luzes se acendem nos postes. Um ônibus fecha o cruzamento entre alameda e avenida. Os carros buzinam, com seus donos higiênicos bradando na internet.
Dias nebulosos pairam a nação. Dias nebulosos pairam São Paulo. Chove-se canivete, sapos, cobras & lagartos. Poderia ser uma distopia, literal. Aconteceu. Em uma terça-feira de agosto uma nuvem negra encobriu a atmosfera, chegando a ser espetada pelas antenas pontiagudas dos arranha-céus.
A nebulosidade estaciona. Os carros seguem barulhentos, em alta velocidade, nas marginais, atropelando marginais e seus sinônimos. Tem gente que não acredita. Que assassina o verbo, rasga-o em pura inconsequência. “Só vendo”, dizem por aí, dentro de seus carros com ar refrigerado. São eles beatos de fé, coachs de amores perdidos, ciganos virtuais, malucos que se entorpecem de um lança alcunhado como “positividade tóxica”. Eles não acreditam. Seguem na multidão a caminho do abismo, viciam-se fácil, são maleáveis, egoístas, medíocres.
Soará algo insofismável, indecifrável, catastrófico, apocalíptico essa tal distopia contada. Ao mesmo tempo haverá incompreensão. “Não acreditam no quê? ”. Não sei. A crendice é algo variável, assim como as tolices que demandam certos atos de crer ou não em algo. Tem gente que acredita em Deus (e no Diabo), só em Deus (ou só no Diabo), tem gente que acredita no amor, na guerra – não faça amor, faça guerra! Poderia ser um slogan de qualquer coisa hoje em dia, se já não houver.
Tem gente que acredita nas pessoas, no banjo, na guitarra, no Ré menor. Nos Rolling Stones, na orquestra da Filadélfia, nos tenores que sobraram, no estupendo ballet russo. E essas pessoas, exceto os anarquistas que não veem na música uma ordem social, também acreditam nas instituições públicas, nos mandantes e desmandantes. Em tudo que há pela frente, exceto nos anarquistas.
“Acredite na luz, ela estará no fim do túnel”, diz um letreiro evangélico. Embaixo dele: o número da conta para depósito em dinheiro, cheque, cartão de débito ou crédito, ouro, carnês, carro usado, seminovo e novo. A luz falta em dias nebulosos, como na última terça-feira, quando todos fomos pegos de surpresa.
Estava na livraria do Conjunto Nacional, esticado em uma poltrona verde, em vã tentativa de escutar algo psicodélico que pudesse limpar a mente, pelo menos por alguns minutos. Lia os letreiros luminosos da seção de artes. Arquitetura, moda, desenho, luz & sombra.
Levantei-me para arrumar o casaco. Um estalo seguido de estampido. O Conjunto Nacional foi tomado por trevas, ameaça surdamente ruidosa que acometeu aqueles leitores absortos em seus cantos – tirados de surpresa, por alguma força espectral, de suas leituras. Foi um despertar pelas trevas; as cabeças se levantaram. Algo era ensaiado ali.
Falou-se muito em sinal ou providência divina. “O mundo vai acabar”. Lembrei-me da terça-feira em que havia escurecido às 15h. O dia anterior. O clima era estranho, só alguns vendedores comemoraram o apagão. As atividades foram suspendidas na loja. Adolescentes riam e se esquivavam pelas sombras das estantes, correndo, sumiam pelas margens.
De princípio, não houve evacuação. Exceto por aqueles que têm medo do escuro, mas em outro lugar certamente não menos sombrio. Como vagalumes que por suas bundas são pingos miúdos que fagulham pela noite, leitores obstinados persistiram. Ligaram as lanternas do celular e, com forte brilho led, continuaram a árdua tarefa de ler no escuro.
Firmes, nenhum dos vagalumes literários arredou de seu lugar. As luzes foram se ligando e ligando, até que, por um quadrilátero artificial de lanternas, formou-se uma pequena constelação ali, ao redor dos livros empilhados do segundo andar. Cada ponto clareado era uma resistência que, aos poucos, jogava luz naquela escuridão mórbida e soturna.
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