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Foto do escritorTomás Fiore Negreiros

A nobreza da carne

\\ CONTOS


Conforme o banquete se consumiu, a toalha, antes branca, agora assumia uma coloração avermelhada, repleta de pedaços que caíam da louça e das fartas dentadas. Era como se tivesse deixado de lado sua maquiagem e assumido sua natureza marcada por um impulso sádico.

Por Tomás Fiore Negreiros


O banquete (1755), William Hogarth

O tilintar metálico do sino ecoando pelos corredores vazios e mórbidos da enorme residência só podia significar uma coisa: o jantar estava servido. Respondendo ao chamado do sino, uma a uma as portas dos aposentos foram se abrindo. De cada quarto uma figura, vestindo seus melhores e mais sofisticados trajes, se juntava àquela procissão macabra, que agora tomava forma no grande corredor.


Na sala de jantar, uma enorme mesa vestida por uma toalha de seda branca e limpa era iluminada por velas sobre candelabros tão velhos quanto o próprio uso, velas essas encarregadas da infeliz tarefa de tentar garantir certo aconchego ao cômodo. Os talheres e pratos, frios e limpos a rigor hospitalar, foram dispostos sobre a toalha de forma simétrica e meticulosa. Tanto um jantar quanto uma cirurgia, o salão abria suas portas gigantescas para a noite e engolia seus convidados. Era como se o aposento tivesse vida própria, um grande e velho organismo-cenário que respirava com dificuldade enquanto prestava alguns de seus espaços vagos para encontros de outra ordem e natureza.


Assim que cada um tomou seu devido assento, empregados de uma seriedade mortal entraram no salão e serviram o primeiro prato: uma mistura de folhas verdes escuras com pequenos globos oculares regados a um molho ralo que se acumulava no fundo do prato como uma poça de água suja.


Iniciava-se o banquete.


O que antes era uma procissão silenciosa agora havia se tornado um carnaval pitoresco de conversas e discussões acaloradas: algumas discutiam a eficiência da ingestão de unhas do terceiro dedo do pé para se perder gordura abdominal; já os menores choramingavam que não queriam comer suas folhas verdes, enquanto outros negociavam entre si olhos de cores e tamanhos diferentes, como se estes não fossem virar uma massa amorfa e indistinguível quando digeridos. Os mais velhos, com a conversa regada a uma bebida de cor vermelho- ubi, cujo receptáculo era uma jarra contendo um feto humano de aproximadamente cinco meses, se gabavam de suas últimas viagens e de como passaram um período agradável com os colegas de trabalho caçando negros no sul da savana africana.


Tendo restado apenas algumas folhas nos pratos e alguns olhos de cor mais amarelada, não tão apreciados devido ao seu sabor amargo, os garçons, seguindo sua coreografia corriqueira, retiraram os pratos sujos. Em seguida trouxeram à mesa o prato principal: uma bandeja contendo uma figura gorda e peluda. A carne branca e tenra, que parecia ser oriunda do leste europeu, era consumida ao natural, tentando manter as condições originais em que a criatura havia sido caçada e abatida. Aquele que se sentava mais perto da bandeja se ocupou de servir os demais presentes com pedaços da coxa posterior e do peito. Não bastava a carne ser farta e prometer-se aos pratos de todos ali: os pequenos se empurravam e brigavam entre si almejando uma fatia a mais ou um pedaço mais gordo.


Apesar do conflito, as partes disputadas não eram os membros tão nobres se comparados às vísceras. Estas sim eram mais apreciadas por conter resquícios da dieta do tipo sobre a bandeja, rica e nutritiva, de sabor forte e terroso. Por conta disso, tal iguaria era apenas reservada para as figuras mais importantes e experientes da mesa, evitando que o salão se tornasse o campo de uma sangrenta guerra por vísceras.


Conforme o banquete se consumiu, a toalha, antes branca, agora assumia uma coloração avermelhada, repleta de pedaços que caíam da louça e das fartas dentadas. Era como se tivesse deixado de lado sua maquiagem e assumido sua natureza marcada por um impulso sádico. Os pratos também, já não mais limpos, eram verdadeiros cenários pós-massacre, restando apenas sobras de carcaça e ossada levadas pelos serventes para que animais e insetos noturnos pudessem desaparecer com os vestígios da chacina.


Qualquer observador poderia ser levado a crer que tais transformações se deram por fatores externos — pelos ossos que mudaram o cenário dos pratos, por pedaços que transformaram a aparência da toalha de mesa, pela bebida avermelhada que se misturou à essência de cada um ali presente… Pelo contrário: as máscaras apenas foram removidas e os espíritos vieram dançar fora das sombras, permitindo que os rostos pudessem ser parcialmente iluminados pela luz morna das velas que compunham o organismo-cenário.


Deu-se então o terceiro ato da “dança dos pratos”. Garçons levando restos, trazendo novos altares de abate, livrando-se das armas do crime, oferecendo novos utensílios de múltiplo uso. Porém, desta vez não havia sido colocada uma nova oferenda sobre a mesa. Não — desta vez apenas uma faca limpa havia sido disposta ao lado da figura que havia destrinchado o prato principal e o servido aos demais. Uma faca limpa e pontuda, um pouco maior que as demais, daquelas que são inúteis quando não se acha algo à altura, digo, algo da grossura para cortar.


A conversa parou, o movimento cessou, e todo o salão se viu imerso num suspense que ainda não havia sido apresentado àquela noite. Atenção total era colocada sobre a figura e o objeto: todos olhavam para o conjunto sem saber se era ele que detinha a faca ou se ela que o guiava em sua ação.


“O que será feito? Qual vai ser o fim desta ponta precisamente afiada? Mal podemos encarar a frieza de sua lâmina sem que nosso olhar seja cortado. Não é possível que seja desperdiçada pela ausência de algo para se cortar. Será que o indivíduo vai furar a si próprio? Pelo menos seria algo digno diante de um utensílio tão nobre.”


A cena antes povoada por conversas e ruídos de talheres agora tinha toda sua população afogada por pensamentos e ideias inquietas. Era como se cada um lá tivesse suspendido seu diálogo com o outro externo para poder ouvir aquela voz ensurdecedora que berrava em sua cabeça, tentando resolver o enigma do metal cintilante posto à disposição.


Na simplicidade e sutileza de um movimento tão bem executado, a mão agarrou o utensílio e o arremessou para um dos lados do salão. Foi como se aquela faca nadando no ar cortasse todo o suspense que inundava o ambiente, oferecendo uma possibilidade de alívio para a dúvida angustiante que assolava cada cabeça ali presente.


Cada cabeça menos uma.


O alívio veio com o fio de sangue que descia da testa de uma das crianças presentes, cravada pela ponta magnífica e nobre da faca. Sua pele branca, e agora pálida, fazia contraste com o pequeno rio vermelho que seguia o fluxo até o seu destino final no mar ensanguentado da toalha de mesa, uma verdadeira orgia rubra ocorria ali embaixo. Todos os demais olhares ali presentes agora observavam os olhos imóveis e sem vida daquele corpo que tivera a testa beijada pela ponta da faca.


O silêncio tardou mais alguns segundos, mas logo foi expulso por completo após uma grande salva de palmas e assovios de comemoração. Era a retribuição do público após tal espetáculo, saudando a pureza e doçura da sobremesa.


Um fim digno e nobre para o banquete.

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