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Foto do escritorMatheus Lopes Quirino

A mulher da pinta verde

\\ ENTREVERES

Seria ela um etê? Começando a se dissolver ali, via pinta, e mostrar sua coloração natural, justamente pela sua infame excursão nos dutos da Paulicéia.

Por Matheus Lopes Quirino

Naquele gélido vagão, das profundezas de um quente asfalto, nas trevas do subsolo – mas, calma lá, não aquele habitual, folclórico, do qual a figura chifruda é operador, cá estamos em uma crônica, apenas –, o caminho pré-feriado foi marcado por um estigma, literal, que ali estava “hospedado” (quem sabe) em um transeunte, por hora parado, imóvel feito uma estátua; dos dutos de melhor tráfego de uma metrópole, refrigeração, praticidade e algum mistério, justificando o itálico acima: vamos ao metrô.

E era só uma tarde de inverno em São Paulo (“lá em cima”), abaixo, agora, voltando ao freezer (ops, vagão), os também gelados assentos, fantasmas, abrigavam um par de nádegas magrinhas, visto sua proporção: uma mulher, já de seus quarenta/cinquenta anos, de braços cruzados naquela geladeira expressa, como um picolé de chuchu.

Absorta em seu mundo confidencial – pois nós podemos tentar imaginar, mas nunca saberemos com certeza, de fato, quais seriam seus pensamentos, naqueles quinze minutos, ao máximo, no vagão do metrô. Catatônica, consigo levava dois malões e uma malinha. Um deles possuía um cadeado. Uma mala de viagem, com cadeado: alta periculosidade. Haveria ali, jazido, um corpo?! Que, conforme os ares do metrô decresciam a temperatura real em celsius, conservava-se. Caso sim, ela seria uma profissional do ramo. Seria o vagão, por deus, uma câmara mortuária? Como álibi para aquele corpo esfaqueado dentro da mala, com as vísceras empacotadas, capeadas e lacradas com a fita preta isolante comprada no depósito de ferramentas ou na lojinha de um real ali perto do metrô Vila Madalena, para os pingos de sangue não mancharem o chão, daquele inferno gelado, há metros da superfície.

No recinto, ainda bem, além da mulher e suas malas, existiam, simplesmente, simplórios, alguns outros passageiros que absortos estavam em um outro mundo, muito menos interessante em relação ao estado catatônico da senhora: celulares ameaçadores. Entretidos, provavelmente, custo e tenho dó de todos os três, pelo não aproveitamento da cena, suspeita, suspeitíssima!

A mulher sentada não encostou as mãos nem um minuto da bagagem. Tinha um ar de pureza e assepsia. Estava ereta demais: coluna reta, retíssima: capacidade para um super-humano ou algo além disso. Olhava mesmo era as sardas do chão de metrô: esse azul chapado com pintinhas pretas e sujeiras. Como duas bolas de gude, hipnótica, mal se balangava naquele duto de velocidade contínua: era uma estátua, assassina e equilibrista de todas as cartilagens e articulações?

Temporariamente sim, pelo cru julgamento. Claro, no sarro da observação muito abaixo do rés do chão, naqueles dutos subterrâneos, jus. E sem demasia jurídica, com muito achismo e nenhum pudor, as conclusões tidas lá embaixo, do subsolo, no caso, basearam-se em uma única prova empírica, notável em uma olhadela furtiva, mas nem tanto: existia, em seu braço esquerdo, uma pinta verde.

Coisa, até então, nova para as vistas. Pinta verde? Como assim? Era redonda, estava sob sua pele, parecia uma pinta, talvez uma mancha, mas era verde.

Mancha de canetinha? Adesivo? A menor Tatoo do mundo – certamente sem significado? Uma bolinha: estranha. São do conhecimento público as colorações das pintas, erupções da pele, extensões das ditas colorações do homem – no caso a mulher, se é que ela era humana –, esse que a língua portuguesa machista (ou não, não cabe à deixa discutir) generaliza com terminações gramaticais dependuradas, se é que me entendem. Pintas podem ser pretas, marrons, bejes, brancas e toda a palheta Pantone entre essas colorações. Pintas são lombadas da carne, como essas das ruas, umas tímidas, outras só um sinalzinho, chapado. Sem relevo. Outras assemelham-se até a um morrinho. Com aqueles pelos, compridos – quando não um só em sua ponta. Nervosos e arrepiados. Tiramos com pinça, caso não haja preguiça.

Malas, cadeados, “catatônismo”. Ela poderia ser um etê, estes normalmente são verdes, como nos filmes. A poção de transfiguração teria falhado: esta iria se revelar um habitante distante de outro mundo, começando a se dissolver ali, via pinta, e mostrar sua coloração natural, justamente pela sua infame excursão nos dutos da Paulicéia.

E quem sabe, ao invés de picotado, só amordaçado, dentro da mala, não haveria um homem inteiro (a mala era grande) ou uns bebês para serem levados a Marte. Quem sabe a pinta era criptonita. Quem sabe nem etê, nem criptonita, nem nada aquilo fosse. Apenas uma pinta verde, uma coisa terrivelmente banal, embora seja pouco vista por aí afora.

Debaixo do subsolo, até sair do vagão, nenhuma atitude suspeita, nenhum ataque de sucção, não houve cerimônia de abdução, nem nada. Nem um terceiro olho, também verde, não fosse aquela pinta, entreolhada, curiosa, como um pingo de crayon sob a pele que aquele ser habita. Com pinta ou sem pinta, de todo modo era suspeita a habitante. Lá fora, conforme a quentura das tardes do inverno paulistano decaia até à noite, é sabido já: vale andar com o casaco amarrado nas calças.

No vagão, todos ali estavam com os seus. A mulher da pinta verde não. Mas quem sabe, ainda, além dos pensamentos e da suposição, se em seus grandes malões só houvessem casacos de pele, muitos e muitos, e ela fosse a mulher mais friorenta de todas, embora estivesse de regatas, com certeza em outro planeta.


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