\\ CADERNO DE ANOTAÇÕES
A arte de contar histórias, sobretudo para crianças. Uma habilidade das mais admiráveis de todo mundo. Não é tarefa para mero cancioneiro
Por Matheus Lopes Quirino
Para Ruth, sempre inesquecível
Era um toquinho de gente, tímido, punha-se a brincar, só, nos degraus da escada da vó com seus cavaleiros de vinil, arco e flecha, espadinhas e catapultas. Debaixo da casa, no salão enorme, palco das aventuras em pleno descortinar da infância, o toquinho cresceu. Brincou de tudo ali, foi cientista, músico, bruxo, pirata, super-herói. Montou feira, acampamento, nadou na piscina de montar quando estava calor.
Aos poucos o toquinho de gente começou a falar aos montes. E, como toda família – ele observava –, assim foi engrossando a voz, cresceram os pelos, triplicou de tamanho. Hoje, o toquinho é uma mistura de escritor e jornalista, às vezes uma coisa se confunde com a outra. Às vezes é bom, às vezes não.
O gosto por contar histórias geralmente nasce em duas ocasiões. A primeira, cada vez menos comum, dá-se por influência de uma biblioteca em casa; do gosto pela leitura, normalmente, compartilhado dos pais para os filhos. A segunda, praticamente, hoje, inexistente, vê-se na arte de contar histórias, sobretudo para crianças. Uma habilidade das mais admiráveis de todo mundo. Não é tarefa para mero cancioneiro.
“Escravos de jó, jogava caxangá, tira põe, deixa ficar, guerreiros com guerreiros fazem zigue, zigue, zá...”. E continuava, até subir “Sapo cururu, na beira do rio, quando o sapo chia, menino, ele está com frio”. Essas marchinhas fizeram parte da infância das mais sortudas crianças. Outros tempos. Hoje, pala para outra conversa, se houver, muitos levariam a mal o pobre do caxangá, pedindo suas credencias e, eventualmente, inclinações.
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Não é fácil escrever para quem me contou tantas histórias. As primeiras histórias. Aquelas inventadas e muito bem conduzidas. Sobre bruxas e castelos, aventuras em tempos antigos. Em mundos coloridos. De gesto simples e coser pontilhado, pela agulha miúda da vida, enquanto se forja um laço dos mais sólidos, ao mesmo tempo, a agulha machuca. Cresce a ferida que só cicatriza com o tempo.
É só uma pontada e, de repente, sangra. Alguém vem com o band-aid. O primeiro band-aid a gente nunca esquece. E lá está ele, junto às minhas lembranças mais antigas. Colocado pela minha vó, no par dessas memórias, outra lembrança surge, com um toque alaranjado – devia ter uns quatro anos, até menos, minha vó foi me buscar na escolinha da rua de cima da casa dela, caminhamos, deleitados com o desnudo crepúsculo para além das montanhas que cercam a cidade; laranja, violeta, gris, nuvens. Aquela é minha primeira lembrança do sol poente.
Lembranças... E vem também a primeira vez em que provei polenta. Curiosamente, foi no dia em que aprendi a escrever. Devia ter uns seis anos de idade. Estava na mesa da cozinha dela rabiscando, a primeira palavra foi “dado”. Fiquei tão feliz que, mesmo sem apetite algum, comi uma pratada de polenta... E gostei. Minha vó sabia o que fazia. E sempre pilotou o melhor dos fogões.
Cria italiana, a matriarca da família não era de requintes, mas também não requentava. Esbanjava um humor ácido e um coração que inflou feito suflé. Lembro-me do picadinho de carne com batata e cenoura. Meu prato preferido em todo mundo. Fui conquistado pelo paladar. Aprendi a comer bem. Gostar de massas, queijos, doces, verduras e o que mais houvesse sob a mesa, pratos sempre feitos sob os olhos âmbar e mãos habilidosas da dona Ruth.
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Brincamos de esconde-esconde, pega-pega, jogávamos Stop, viajámos juntos, dormíamos juntos. Éramos um a companhia do outro. E não cansávamos um do outro. Dos causos contáveis e não contáveis, sob o crivo materno, a senhorinha, numa das férias de inverno passadas na casa da tia avó, comprou ao toquinho uma caixa de lápis tão pequenos. Naquele dia, ele inventou seu primeiro universo.
Nessas viagens histórias das mais lindas se desenrolaram naquele tapete da infância. Ela inventava, reinventava, separava por temas. Sempre uma bruxinha que adorava falar, cozinhar, falar com os bichos. Ir à horta com o neto, arrancar do chão cenouras ou cebolinhas.
O poder das palavras, timidamente, vai tomando conta de quem as escuta. Feito adrenalina, conforme o enredo vai aproximando do clímax, as pupilas dilatam, os pelos arrepiam, calafrios. As mãos começam a suar. Mas também pode-se abrir um sorriso dos mais espaçosos, mostrando ao mundo toda arcada dentária, enquanto a risada sai dos rincões do corpo como uma bola de canhão, dessas de navio pirata, esses, de brinquedo, brincados no degrau da casa da vó.
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Minha fadinha. Debaixo de suas asas sempre me senti seguro. Agora, carrego-te comigo em meus bolsos, cada verso ainda na cabeça. A vida é uma joia efêmera que se esvai, esfarela. A beleza se mantém na memória. Olhei para os olhos dela, marejados, aquele âmbar cintilando. Nestas horas, quando faltam as palavras, o coração é quem fala mais alto. Como uma ligação direta. Ela segurou minha mão, riu até o último minuto. Atravessei o biombo. Depois de alguns dias, soube que ela havia ido para o quarto. O coração se aquietou, por um período curto, ao menos.
Lembranças – da contação de histórias, do gosto pela conversa, da curiosidade, do bom paladar, da delicadeza, da superstição, de certos preconceitos e certos acertos. De se arriscar com prudência, mas se arriscar. E, por um abraço, voltar no tempo, como quando assistimos juntos ao meu primeiro pôr do sol. E eu a abracei com as asas de todos os pássaros.
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