\\ ARTE
Nunca, na magnificente e múltipla história de nossa indústria fonográfica, uma gravação havia gerado tamanhas controvérsias.
Por Vitor Hugo Gonçalves, especial para Frente & Versos*
Capa do Álbum "Chega de Saudade", lançado em 1959
Em 2018 fez sessenta anos da gravação do álbum “Chega de saudade”, um desenrolar do samba canção com requintadas evidências do jazz apresentava, com seus eternos dois minutos de duração, a face inerente à imagem do ser brasileiro mundo afora; encarnava-se, à voz de João Gilberto, a Bossa Nova.
Nunca, na magnificente e múltipla história de nossa indústria fonográfica, uma gravação havia gerado tamanhas controvérsias. Executado em uma sexta-feira, onze de julho de 1958, o sexagenário setenta e oito rotações “Chega de Saudade” equiparou unanimidade com delicada estranheza. A canção creditada à primorosa dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes, teve inconfundível competência para mudar drasticamente os rumos musicais do nosso país, gerando influências sociais e culturais, aqui e no exterior.
Um Brasil a.B. (antes da Bossa) e outro d.B. (depois da Bossa). Contemplava-se em toda extensão territorial comandada por Juscelino Kubitscheck uma evidente transição para o futuro, e as rádios, porta-vozes das inovações, transmitiam o novo momento. Fragmentadas entre firmados Carlos Galhardo’s e modernas Maysa’s, foi em timbre de sussurro que o tenro ritmo vociferou sucesso. Os arranjos assemelhavam-se ao já conhecido e aclamado samba, a batida ritmada do violão marcava uma alteração do tempo forte, cada linha aproximava a realidade do ouvinte que se via atônito ao amor, e seus versos configurados privilegiavam entonações em contratempo – a célebre síncope… Elementos dotados de um misticismo único, popular, espiritual e contemporâneo fundiram-se numa unissonância esplendida. Um cativante e fidedigno ritmo nosso, uma commodity brasileira.
Como toda grandiosa e afortunada originalidade, o impacto causado pela excêntrica novidade dividiu críticas; nada além do natural espanto pelo novo. Em um espaço de tempo nada delongado, a Bossa Nova era quase que unanimidade em apreciação. De fato, o ritmo cadenciado que foi ricamente estruturado em formato de choro, estendia-se na estreita e coloquial intimidade lírica, sonora e viva, ocasionando espaço ao pertencer particular do populismo.
“Chega de Saudade” leva em sua tônica todo o conceito primordial do gênero. As notas do principiante Tom Jobim cresciam em uma progressão surpreendente e genial, atrelando-se aos sentimentos e ao lirismo que circunda perante a imagem da musa reavivada; é a personificação musical íntegra de afeto em irresistíveis acenos de carinho. João Gilberto, perfeccionista nato, trouxe uma interpretação sublime para a, não inédita, canção, e acabou intervindo em definitivo sobre a carreira de expoentes da música brasileira (Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil…).
A gravação, considerada o marco zero da Bossa Nova, foi a trilha que conduziu o país modernidade a dentro. Um Brasil do futebol, do multiculturalismo, de Niemeyer, de Tom e Vinicius… um Brasil reinventado, novo, assim como a Bossa.
*Matéria originalmente publicada na segunda edição da Revista Veredas
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