\\ CINEMA
Alma e Elizabeth, na medida em que se aproximam cada vez mais, passam a ser retratadas como a mesma pessoa. Talvez se possa afirmar que são duas personas de uma mesma pessoa
Por Laila Nuñez*, colaboração para Frentes Versos
O roteiro de Persona (1966), de Ingmar Bergman, é comovente desde o início. Em um dos primeiros monólogos do filme — a fala da administradora do hospital sobre a condição da atriz — , já está posta a sua principal questão: a autenticidade do ser. A pergunta que ressoa para os espectadores é se esta fidelidade a si mesmo — mesmo que ao estado momentâneo do “eu” — significa voltar-se para dentro, abstendo-se dos padrões sociais que se impõem, ou se significa moldar-se para aparentar aquilo que deseja ser e, por conseguinte, transformar-se naquilo que se parece. Vale, aqui, mencionar, na íntegra, o poético discurso que praticamente abre a obra:
Eu entendo muito bem. O inútil sonho de ser. Não parecer, mas ser. Estar alerta em todos os momentos. A luta: o que você é com os outros e o que você verdadeiramente é. Um sentimento de vertigem e a constante fome de finalmente ser exposta. Ser vista por dentro, cortada, até mesmo eliminada. Cada tom de voz, uma mentira. Cada gesto, falso. Cada sorriso, uma careta. […] Você pode se fechar, se fechar para o mundo. Então não tem que interpretar papéis, fazer caras, gestos falsos… Acreditaria que sim, mas a realidade é diabólica. Seu esconderijo não é à prova d’água. A vida engana em todos os aspectos. Você é forçada a reagir. Ninguém pergunta se é real ou não, se é sincera ou mentirosa. Isso só é importante no teatro. Talvez nem nele.[1]
Através da angústia da protagonista, Elizabeth Vogler — a atriz que sentia-se atriz a todo instante — , Bergman torna ainda menos claras as já bastante turvas fronteiras entre o parecer e o ser. Faz-nos perguntar a nós mesmos se, ao longo de nossas vidas, parecemos mais do que fomos. Neste sentido, norteado pelo enigmático enredo de Persona e pelos significantes que compõem toda a sua atmosfera — o silêncio de Elizabeth, o título do filme e mesmo o nome da enfermeira, por exemplo –, este trabalho se propõe a explorar os limites nebulosos da identidade, enquanto criação individual e inscrição no código, e os efeitos que o aproximar-se do ser produz sobre o parecer, e vice-versa.
Em seu ensaio intitulado A Pele de Cobra, o diretor reflete, atravessado por suas memórias e fantasias pessoais, sobre o que de si existe em suas obras e sobre sua relação com a arte. Para ele, a arte, no geral — para além do Cinema –, deve ser experimentada através de uma relação que não é pré-codificada, que não busca — porque, em última instância, não possui — sentido. Bergman chega a escrever, inclusive, que a arte não detém mais a capacidade de determinar ou mesmo influenciar o desenvolvimento de nossas vidas. A arte, em suas palavras, é livre, “livre de vergonha, irresponsável, e como eu disse: o movimento é intenso, quase febril, como, me parece, uma pele de cobra cheia de formigas. A cobra já está morta há muito tempo, comida, desprovida de seu veneno, mas sua pele se move, repleta de vidas intrusas.” Sua visão cética acerca do poder transformador da arte pareceu, em muito, dialogar com a visão de Elizabeth Vogler a propósito de seu próprio ofício. A atriz, que, durante uma peça, se cala e se desculpa por ter sentido vontade de rir, anuncia o seu despertar, naquele primeiro instante de emudecimento, para a inutilidade e a insignificância de sua arte, “morta” e “repleta de vidas intrusas”[2].
O termo hipócrita nasceu nos palcos, utilizado, em grego, para designar o ator — hypokrites. Significava, portanto, nada mais que aquele que desempenha papéis. Com Platão, porém, o ator será aquele que afasta-se do conhecimento verdadeiro porque produz uma imitação daquilo que já é, em si, uma cópia imperfeita do ideal. Como evidência da vitória da perspectiva platônica sobre verdade e mimesis no pensamento ocidental, pode-se verificar que a suspeição em relação ao uso de máscaras se inscreveu na língua, vinculando-se, negativamente, ao ocultamento da verdade. Articulado a acusações morais, o termo sofre, então, um deslocamento de sentido, e passa a referir-se tão somente àquele que mente. Marca-se, aqui, uma diferença fundamental entre aparência e verdade.
No cerne desta transformação está a de desvalorização do trabalho expressivo do ator. Quando atuação e mentira se confundem, encobre-se todo o esforço de construção artística de um personagem, que demanda um reconhecimento e uma análise não apenas das relações entre indivíduo e sociedade, como também da própria constituição de si a partir dessas relações. O exercício do ator é, em certa medida, extremamente idiossincrático. No que usa a máscara, apresenta a si mesmo. Liv Ullmann, a atriz que interpreta Elizabeth Vogler, confirma esta ideia, em entrevista a David Outerbridge:
Você tem que encontrar uma técnica com a qual toda noite você mostre ou imite raiva pelo conhecimento profundo de experiências passadas de sua própria raiva de modo que você possa visualizá-la, e visualizando-a você realmente a sente. É o uso de sua própria raiva, é como sua raiva, mas pertence ao personagem.[3]
Como a profunda associação moralista se enraíza entre atuação e imitação, passa-se a valorizar uma expressividade espontânea em detrimento da expressividade artística, criando personas. A noção de autenticidade começa, então, a se confundir com espontaneidade. Dessa maneira, o poder do ator já não está mais tão disponível, nem sua arte é mais necessária. É exatamente este o problema que se apresenta no início do filme: a busca de Elizabeth, que sente que ser atriz é inútil, pela autenticidade verdadeira. Seu emudecimento é, portanto, uma tentativa desesperada de, supostamente livre das leis da linguagem, desacorrentar-se das aparências e transmitir apenas aquilo que é genuíno e espontâneo, como o grito que emite com a possibilidade de ser queimada.
A busca pela autenticidade é a busca pelo Ser mais essencial, aquilo que seria imutável e, por conseguinte, verdadeiro. A sustentação de uma Verdade, em oposição àquilo que é aparência e falso, é, no entanto, um mero artifício, útil à conservação do homem comum, que precisa de crenças estáveis. Esta demarcação clara entre sujeito e aparência “não passa de um preconceito moral”, como afirma o filósofo Friedrich Nietzsche (1886), em Além do Bem e do Mal:
Admita-se ao menos o seguinte: não existiria nenhuma vida, senão com base em avaliações e aparências perspectivas; e se alguém, com o virtuoso entusiasmo e a rudeza de tantos outros filósofos, quisesse abolir por inteiro o “mundo aparente”, bem, supondo que vocês pudessem fazê-lo — também da sua “verdade” não restaria nada! Sim, pois o que nos obriga a supor que há uma oposição essencial entre “verdadeiro” e “falso”?[4]
Nesse sentido, Nietzsche redimensiona o ser humano a partir de uma ressignificação da ideia de aparência, segundo a qual verdade e mentira se dissolveriam. “Máscara é morada. Também é morada o rosto que a máscara reveste. […] A cadeia de máscaras não termina”[5]. Máscara não é disfarce, é a própria configuração do sujeito. Elizabeth nega a máscara porque ainda está compromissada com a ideia de uma identidade verdadeira, essencial, de um Ser “com delimitações muito precisas”, o que exige, necessariamente, “o afastamento de qualquer ameaça de ruptura”[6].
O discurso, para a atriz, representa esta ameaça. A fala materializa o real. Citando Clarice Lispector (1977), no conto Os desastres de Sofia: “As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito”.[7] Não à toa, no filme, as duas cenas que talvez sejam as mais fortes e mais reais não acontecem visualmente, são apenas detalhadamente descritas no monólogo de Alma: a traição da enfermeira com dois desconhecidos na praia e a declaração sobre a maternidade indesejada de Elizabeth, na sequência final. Inclusive, muitos dos que já assistiram a Persona pensam que ambos os momentos são, de fato, exibidos no filme, tamanha a potência e a verdade no discurso — palavra empregada, desta vez, para designar aquilo que é, de fato, o real.
O emudecimento da personagem é o primeiro e principal elemento condutor de toda a narrativa do filme. O motivo pelo qual a atriz teria optado pelo silêncio, durante toda a película, permanece em suspenso. A princípio, pode indicar uma vontade de ser outras pessoas, de abraçar a infinita possibilidades de caminhos e personas, de alcançar um mutismo primitivo do qual qualquer discurso provém — que Lacan denomina alíngua. Alíngua é a língua do desejo, da expressão indeterminada e ilimitada da vontade humana. O que se manifestasse desta mudez seria, portanto, genuíno.
Paradoxalmente, o que se observa é que a transgressão de Elizabeth Vogler à condição de alíngua é significante, justamente, pelo medo que sente diante desta vastidão de sentidos, que se apresenta como um campo de vias infinitas que, simultaneamente, ampliam e delimitam o ser. A atriz paralisa e se esgota em seu silêncio porque ele é uma fuga de outros seres que são reais, constitutivos dela, e que precisam, portanto, serem afirmados para tomar forma.
Alma, que não por acaso possui este nome, é esta figura de um ser inventivo, que reconhece e articula suas múltiplas facetas em sua própria estrutura. Diferente de Elizabeth, que supostamente está preocupada em atingir uma essência, uma natureza íntima e pura, livre de “mentiras”, a enfermeira sabe que a liberdade nada tem a ver com a Verdade, o que está claro em sua fala: “Is it really important that you don’t lie, that you tell the truth, talk with a genuine tone of voice? Can you live without talking freely? Lie and make excuses? Isn’t it better to give yourself permission to be lazy and lie?”[8]
Em termos nietzschianos, Alma teria “se tornado aquilo que é”, expressão que, de forma alguma, significa assumir uma identidade profunda desde sempre dada. Significa, ao contrário, o desacorrentamento dos deveres do Ser, abrindo as condições necessárias ao experimento consigo mesmo para uma autoconstituição radical. É o vir-a-ser outros, aventurar-se na alteridade e, ao mesmo tempo, dominar esta vastidão própria, impor uma ordem aos caos internos. É perder-se e criar-se. É fruir de sua inteireza através de sua multiformidade. E para “que alguém se torne o que se é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é. Desse ponto de vista possuem sentido e valor próprios até os desacertos da vida”[9].
Não suspeitar do que se é pode parecer, numa leitura psicanalítica, o avesso daquilo que se propõe na conhecida máxima freudiana “ali onde Isso era, é meu dever que Eu venha a ser”. Entretanto, o não suspeitar de si, no sentido que Nietzsche concebe, não significa deixar de revisar e suspender a si mesmo, mas, sim, reiterar tudo aquilo que se descobre ser no trabalho constante de análise — sentido, portanto, em completa ressonância àquele apresentado por Freud.
Alma e Elizabeth, na medida em que se aproximam cada vez mais, passam a ser retratadas como a mesma pessoa. Talvez se possa afirmar que são duas personas de uma mesma pessoa: Alma, que personifica o pecado e a imoralidade sob um aspecto quase infantil e inocente; Elizabeth, madura, introvertida, marcada por uma repressão profunda de seus desejos. Em algum aspecto, se assemelham, respectivamente, à configuração do Isso e do Supereu na construção do Eu.
São os dois polos das várias dicotomias que se apresentam no filme: rosto-máscara, realidade-aparência, eu-outro, real-imaginário, palavra-silêncio, alma-corpo, sombra-luz. Em última instância, são as várias dicotomias que nos constituem como seres humanos, sendo a principal delas o conflito psíquico entre Elizabeth, aquela que recalca e adoece, e Alma, aquela de onde provém a cura.
*Laila Algaves Nuñez é nascida no Rio de Janeiro, em 1997, formada em Cinema pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e mestranda em Estética e Estudos Artísticos com especialização em Fotografia e Cinema pela Universidade Nova de Lisboa. No campo das artes visuais, possui interesse particular em fotografia contemporânea e videoarte. Atua profissionalmente como fotógrafa, montadora e produtora de conteúdo digital.
E-mail: laila.algaves@gmail.com
Referências: [1] PERSONA. Direção: Ingmar Bergman. AB Svensk Filmindustri: 1966. 125 min., p&b. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=wfMJRN2RHSE>. Acesso em: nov. 2016. [2] BERGMAN, I. Images: My Life in Film. Nova Iorque: Arcade, 1990, p. 112. [3] OUTERBRIDGE, D. E., Liv Ullmann Sem Falsidades. Rio de Janeiro: Nórdica, 1979, p. 17. [4] NIETZSCHE, F. Além do Bem e o do Mal. Consultado em versão digital, disponível em <https://neppec.fe.ufg.br/up/4/o/Al__m_do__Bem_e_do_Mal.pdf> e acesso em nov. 2016. §34, p. 47. [5] SCHÜLER, D. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 178. [6] CHAFFIN, Cássia. A Perdição Criadora. Tese (Doutorado) — Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011. 212 f, p. 166. [7] LISPECTOR, C. Os desastres de Sofia. Consultado em versão digital, disponível em <http://www.beatrix.pro.br/index.php/os-desastres-de-sofia-clarice-lispector/> e acesso em nov. 2016. [8] PERSONA. Direção: Ingmar Bergman. AB Svensk Filmindustri: 1966. 125 min., p&b. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=wfMJRN2RHSE>. Acesso em: nov. 2016. [9] NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Consultado em versão digital, disponível em <http://www.lusosofia.net/textos/nietzsche_friedrich_ecce_homo.pdf> e acesso em nov. 2016. § 9.
(Os textos de colaboração não expressam necessariamente a opinião da FV)
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