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A Terra é Azul Como uma Laranja coloca em discussão a importância da arte como modo de cuidado, de experimentação e de Política.
Por Tomás Fiore Negreiros

Ao se questionar sobre a “literaturalidade” de sua obra-documental Vozes de Tchernóbil: A história oral do desastre nuclear (2016), a autora Svetlana Aleksiévitch respondeu, no apêndice do próprio livro, da seguinte maneira:
“Mas o que é literatura hoje? Quem pode responder? Vivemos mais rápido que antes. O conteúdo rompe a forma. Ele a quebra e modifica. Tudo extravasa das margens: a música, a pintura e, no documento, a palavra escapa aos limites do documento. Não há fronteira entre o fato e a ficção, um transborda sobre o outro. Mesmo a testemunha não é imparcial. Ao narrar, o homem cria, luta com o tempo assim como o escultor com o mármore. Ele é um ator e um criador.”
Conterrânea de Aleksiévitch, a diretora ucraniana Iryna Tsilyk trouxe os mesmos questionamentos e indagações à sétima arte ao apresentar o filme A Terra é Azul Como uma Laranja (2020) na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Um meta-documentário, uma ficção documental, uma autoficção,... use o termo que quiser. Para Tsilyk, assim como foi para Aleksiévitch, parece ser mais importante contar a história da vida cotidiana da alma, dos pequenos grandes homens e mulheres engrandecidos pelo sofrimento singular e universal de cada um.
A Terra é Azul Como uma Laranja (2020) narra a história de Anna e seus filhos, uma família que vive na região de Donbass, cujo conflito mais recente pela posse do território se dá entre Ucrânia e Rússia desde 2014. Familiarizadas com bombardeios noturnos, tanques de guerra atravessando as ruas, e enormes filas para retirada de cestas básicas de alimentos, as protagonistas, ancoradas pela paixão ao cinema, passam a produzir um documentário baseado em suas experiências e perspectivas.

“Algumas pessoas fariam qualquer coisa por uma boa sequência” afirma Anastaciia, a filha do meio, enquanto toda a família assiste a um filme. Talvez seja disso que o longa se trata: uma boa sequência, uma narrativa convincente, um fio de sentido que sustente a crueldade dos dias; mais do que uma atividade lúdica para evitar que as crianças notem as bombas que explodem a casa da vizinha, a produção do documentário sustenta a possibilidade de expressão e significação sobre o que ocorre ali, se perguntando quais sensações e emoções inominadas tomam o corpo de cada uma das envolvidas.
Como define Myroslava, a filha mais velha, a experiência da guerra é um vazio, um total esvaziamento das amizades, das familiaridades, da natureza; um grande vazio que deixa marca em todos, marcas às vezes irreconhecíveis e inomináveis, que ocupam uma estranha presença na existência de quem passou por tal experiência. É um vazio que está lá, mas que foge a toda e qualquer tentativa de racionalização ou explicação por palavras.
Grande parte do conhecimento psicológico produzido na primeira metade do século XX é credor das duas Grandes Guerras: homens que voltavam dos campos de batalha mudos e incapazes de levar a experiência da guerra à linguagem, completamente atormentados pelo que viveram nas trincheiras; homens que experienciaram um completo esvaziamento de sentido perante a brutal diferença entre excessos e intensidades do fronte e a monotonia do cotidiano; homens que passaram a sofrer recorrentes ataques de pânico, aterrorizados com a possibilidade de um ataque iminente.
Aqui mantenho o registro no gênero masculino porque realmente se tratavam (e ainda se trata) de homens em sua maioria. As mulheres, as personagens femininas, ficavam em casa, cuidando das tarefas domésticas, criando os filhos, mantendo a posse da memória e de um passado que corre o risco de se perder... Não é à toa que Anna é mãe solo e sua família é composta majoritariamente por mulheres: os homens vão à guerra e ficam encarregados de suas armas e tanques (mesmo o filho de Anna é o único que brinca com um tanque de brinquedo); já as mulheres ficam em casa, responsáveis pela memória e pela difícil tarefa de narrar a guerra.

Pois bem, Anna e sua família encarregam-se dessa tarefa de colocar a experiência da guerra em linguagem e narrá-la em um claro ato de sobrevivência. Em meio a um cenário completamente hostil, o documentário ainda busca fazer coro a visão otimista entoada pelo poeta surrealista Paul Éluard sobre o planeta, afinal, “a terra é azul como uma laranja” (La terre est bleue comme une orange).
Por mais que o trauma traga um grande vazio, por mais que experiência seja demasiada violenta e irracional, colocá-los em letras, em cores, em sons, em movimentos, pode ser uma poderosa prática para expressá-los, ressignificá-los e experimentá-los de modos outros.
É uma forma de autocuidado que transcende ao indivíduo, evidenciando a dimensão social do cuidado e o nosso enraizamento com o mundo à nossa volta: o filme produzido por Anna e sua família não possibilita apenas que elas se relacionem de um novo modo com a guerra, assumindo uma postura criativa frente ao vivido, mas também permite que toda a comunidade assista àquela produção e se aproprie de uma narrativa que transpassa ao cotidiano bélico em que estão inseridos.
Deste modo, A Terra é Azul Como uma Laranja coloca em discussão a importância da arte como modo de cuidado, de experimentação e de Política. É trazendo à tona a história singular de Anna e sua família, que Iryna Tsilyk evidência como a cultura, sua produção e consumo, é de suma importância para toda e qualquer vida humana.

Parte daí o sentido do filme, que busca empreender seu ritmo narrativo sequenciando imagens em um movimento que vai do geral para o singular: de cenas de devastação que podem remeter a diferentes países em situação de guerra, aos dramas cotidianos de Anna e sua família; das casas e prédios abandonados, ao modo como o porão da casa de Anna, abrigo durante os bombardeios, compõe a decoração do lar; do modo como um tanque, um verde genérico e sem face humana, atravessa a rua ao fundo, enquanto, no primeiro plano, uma das filhas de Anna faz seu relato tão único sobre o que se passa.
É contando a narrativa que cada um é (e como é), que nos encontramos naquilo que nos marca enquanto espécie, grupo, sociedade. É sobre este fio condutor, que o documentário impõe um movimento singular para aquilo que é universal: o potencial de cuidado da linguagem poética, da arte, que, inerente à vida, é um dos campos de luta e transformação humana sobre o mundo ao nosso entorno.
Nessa mesma perspectiva, Iryna Tsilyk se aproxima muito daquilo que Svetlana Aleksiévitch (sempre ela) afirma sobre seu projeto narrativo:
“Destino é a vida de um homem, história é a vida de todos nós. Eu quero narrar a história de forma a não perder de vista o destino de nenhum homem.”
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