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Vozes da resistência

\\ ESPECIAIS


Símbolo de luta e permanência da memória ancestral da periferia, Elizandra Souza escreve sobre um mundo onde o papel da mulher é indispensável.


Por André Vieira

Elizandra divulgando sua última obra Filha do Fogo - 12 Contos de Amor e Cura (Imagem: Fernando Solidade).

Quando pensamos em literatura quais são os primeiros nomes que nos vêm à cabeça? Clarice Lispector, Monteiro Lobato, Drummond e Machado de Assis certamente seriam lembrados sem muito esforço, sobretudo porque esses autores estão associados a nossos primeiros passos na literatura, seja aquela “literatura” das aulas de português mesmo, que se metem a fazer a autópsia de suas obras, seja para aquela literatura “de gosto” que formam nosso carácter como leitores e apreciadores de folhas e palavras. Contudo, muitas vezes nossa memória é falha.


Ao longo da vida temos acesso a diversos autores, obras e ideias que não só ampliam nossas percepções sobre o mundo e o funcionamento das coisas, mas também vão costurando um laço íntimo do leitor com o escritor e seu trabalho. Marcando nos olhos, na fala e sobretudo nas palavras sua influência e, quem dirá, sua transformação de vida, essas obras se tornam fundamentais para a formação do “outro” e a concepção do “eu”. Mas, como podemos saber quais autores se comunicam diretamente conosco? Para Elizandra Souza* o primeiro passo é ler aqueles que vivem próximos a nós antes de criar sua voz própria.


Eu sou antes de ser escritora, sou uma leitora, apaixonada por livros. Eu comecei a fazer um fanzine, esse fanzine foi o primeiro momento que eu publicizei as minhas poesias”, afirma a autora de Águas da Cabaça, sucesso regional nos saraus, festivais e feiras de livros das periferias, mas ainda sim muito desconhecido, assim como Elizandra, do grande público. Eu estou sempre conversando e colocando literatura na conversa; não sou socióloga, antropóloga, historiadora, cientista social eu sou escritora! É isso. Precisamos que nossos livros sejam lidos, mais textos sejam divulgados, que o contexto de nossas falas seja por meio da leitura do que se narra nas histórias”, se indigna de raiva a escritora que possui um público fiel de leitores.


Na ocasião do lançamento da terceira edição virtual da Frentes Versos, a Discêntrica, conversamos com vários autores, produtores culturais e editoras a fim de conhecer melhor suas histórias, suas obras e suas percepções de mundo sobre o cenário literário na cidade de São Paulo e do Brasil de uma maneira geral. No bate-papo que eu e Elizandra tivemos, feito a distância conforme pregam as medidas de distanciamento social, conversamos sobre sua rotina de escrita em tempos de pandemia, suas dificuldades de ser uma mulher negra que vive nas bordas de São Paulo e a importância da representação de vozes marginalizadas, negras e plurais para a periferia, “Hoje a discussão vai além das representatividades, queremos representações múltiplas, isso quer dizer, que não basta colocar uma única escritora negra como porta-voz de todas as demais, não queremos essa reprodução de uma única voz. Queremos múltiplas vozes e diversos pensamentos”.


Confira a entrevista a seguir:

Frentes Versos — Em primeiro lugar, espero que esteja bem em meio a esse “novo normal” da pandemia, Elizandra. Como tem sido sua rotina no isolamento?

Elizandra Souza — Minha rotina agora que está entrando em um novo eixo, pois no início foi muito difícil para mim, eu tive muita insônia e não conseguia planejar o dia seguinte. Agora já estou entendendo que até 2021 temos este cenário. Pensava que em 15 dias tudo voltaria a ser como antes e percebi que nunca mais seremos como antes; mudamos todos bruscamente e estamos tentando nos acertar nesse novo contexto. Não perdendo de vista que chegamos essa semana na marca de 100 mil mortos é desesperador.

Como foi — e é — seu percurso para se tornar uma escritora? Houve algum momento essencial ou alguma experiência particular que te fizeram fincar raízes na literatura?

Eu sou antes de ser escritora, sou uma leitora, apaixonada por livros. Eu comecei a fazer um fanzine de nome Mjiba em 2001, essa palavra vem da língua chona do Zimbábue e significa “Jovem Mulher Revolucionária”. Esse fanzine foi o primeiro momento que eu publicizei as minhas poesias. O Hip Hop é um dos grandes responsáveis pela minha escrita e também o Sarau da Cooperifa.

Em sua biografia no LiterAfro, você conta que sua formação como jornalista, escritora e como pessoa veio muito por conta de seu contato com o movimento hip-hop e com os saraus nas periferias. Você acredita que por essa formação e o contato das pessoas com que você teve te tornaram uma representante de uma cultura e de um modo de vida?

Não tenho dúvidas sobre isso é um modo de viver, eu sou leitora e escritora 24 horas do meu dia e estes espaços são o que a pesquisadora Regina Nogueira chama de Espaço Potencial de Vida, que nos alimenta enquanto povo negro e nos torna potentes para ir aprendendo e desenvolvendo nossa arte, e mais que isso, [para] planejamos ser uma outra sociedade mais plural e igualitária respeitando todos os corpos e todos os pensamentos. [É] Desafiador, mas possível. Outro aspecto da minha vida que sou forjada para ser um produto da nossa luta, de uma sociedade melhor, como também sou o resultado de politicas públicas como a entrada da universidade por cotas raciais pelo Prouni. Além disso, a maioria das publicações dos meus livros foram por meio de editais da Secretaria Municipal de Cultura, que são também resultado dessas reinvindicações sociais dos movimentos culturais da periferia.

Em grande parte de sua obra, sobretudo no livro Águas da Cabaça e no poema “Legítima Defesa”, é possível perceber que você busca por uma voz própria, tanto para denunciar os maus tratos em casa quanto para se autoafirmar como pessoa, mulher, periférica. Você acredita que essa busca por uma representatividade negra/periférica/feminina-feminista seja uma das marcas da nova literatura marginal hoje?

Não posso dizer que seja uma marca, mas temos com isso provocado uma reflexão que é impossível pensar uma nova sociedade sem que nós mulheres negras, LGBTQIA+ estejamos inclusas. Não é possível ser um agente transformador e ser machista, racista e homofóbico. Não cabe para um [único] movimento social lutar sozinho e ser também promotor desses avanços. Há claro que haverá contradições, que são muito difíceis de deixar de lado, já que estamos todos dentro dessa estrutura desigual. Hoje a discussão vai além das representatividades, queremos representações múltiplas, isso quer dizer, que não basta colocar uma única escritora negra como porta-voz de todas as demais, não queremos essa reprodução de uma única voz. Queremos múltiplas vozes e diversos pensamentos.


Semeando suas palavras, Elizandra Souza (Imagem: Fernando Solidade).

Desde 2004, por meio do programa VAI, e por iniciativas pessoais de autores e editoras (entre elas as Edições Torós e a Selo Povo) e coletâneas de saraus, as vozes marginalizadas e periféricas têm ganhado mais espaço no mercado dos livros. E no grande mercado editorial? Você acredita que ele tem acompanhado esse movimento com a publicação de Geovani Martins e o próprio Ferréz (na reedição do Capão Pecado) ou ele ainda tá muito distante da vida e da cultura periféricas?

Não posso falar do mercado editorial das grandes editoras que eu nem sei como elas funcionam de fato. Só sei que elas têm em seus catálogos uma meia dúzia de escritores negros e negras, que já são consagrados dentro dos movimentos, ou talvez com Nobel de literatura ou outros títulos sociais para adentrarem nesse universo, sempre muito geniais e extraordinários. Posso falar do nosso próprio mercado que foi muito potencializado pelos editais culturais e tem essa comercialização nas ações culturais espalhadas pelas periferias de São Paulo, por exemplo.


As grandes editoras têm sim acompanhado, mas só nos publicam quando já temos 20 ou 30 anos de trajetória literária, [quando somos] legitimados pelas ruas como é o caso do livro do Racionais Mc’s e agora também com o livro do Ferréz. Ficamos felizes, mas não podemos trabalhar com exceções, a maioria de nós (e falo isso muito em minhas palestras): tem (e falo por mim mesma) consciência que é um(a) escritor(a) negro(a) desconhecida na sociedade no geral, mas reconhecido(a) e legitimado(a) pelos saraus periféricos. Dentro desse universo sei o quanto a minha literatura é potente e curativa. Volto a dizer: minha escrita também está a serviço da luta e ao mesmo tempo buscando reconhecimento das nossas subjetividades e anseios literários. Só consigo falar desse poder de transformação de dentro dos nossos quilombos.

Ainda falando sobre mercado editorial, você ainda acredita a melhor forma de difundir as temáticas e problemáticas da periferia e de autores da periferia sejam por meio de algum selo de editora? Ou o ambiente virtual e as redes de divulgação de arte e literatura já seriam autossuficientes? (principalmente pensamento em autopublicação e autodivulgação como aconteceu com o Águas da Cabaça)

Com pandemia essa questão voltou forte, ainda não consegui colocar em prática a difusão por meio do e-book. O que tenho feito é uma venda informal do pdf para algum pesquisador fora do país que quer muito ter acesso ao livro, mas o envio [por conta do frete] fica inviável. É algo que vamos precisar refletir sobre pois minha geração pegou essa transição analógica para o digital tivemos que nos adaptar rapidamente para ter algum acesso de trabalho e conseguir sobreviver financeiramente dentro desse novo cenário. Preciso amadurecer essa questão dos e-books e pesquisar um pouco mais também.

Ser mulher não é uma tarefa fácil no Brasil. Ser mulher e escritora muito menos. Agora, ser mulher-escritora-negra-periférica e ainda por cima ativista dever algo dificílimo; quais são as lutas — e os preconceitos — cotidianas que uma mulher como ti, Elizandra enfrenta?

Essa penúltima questão é tipo aquela bomba jornalística, dizem que as últimas perguntas são aquelas que realmente o jornalista queria saber.

Hahaha, se você diz...

Olha é uma equação bem sinistra, não bastasse ser uma dessas coisas, você é tudo isso ao mesmo tempo. Não consigo enumerar as dificuldades pois são muitas e sempre que toco no assunto se torna sempre cansativo e redundante... Defender que somos, seres humanos, e que temos direitos à coisa básica que é existir ou ter a nossa subjetividade garantida é muito cruel. Tenho algumas missões, entre elas a pluralidade de vozes de mulheres negras dentro da literatura e nosso reconhecimento enquanto escritoras. Se tratando de mulher negra é uma luta básica de permanecer viva, me alimentar, poder ler meu livro em paz, ter a minha religião respeitada, quando for parir, ter direito a uma anestesia se necessário, essas coisas básicas a todo ser humano branco. “ Às vezes acho que toda preta como eu só quer um lugar no mato só, descalça, nadar no riacho e tirar as frutas do cacho” parafraseando Mano Brown, Racionais Mc’s, creio que se trate disso nossa luta.

Por fim, gostaria te agradecer Elizandra e te propor um questionamento-reflexão: ao seu ver quais são as barreiras que precisamos transpor para que a literatura marginalizada/periférica/feminista e tudo mais que couber nesse universo imenso seja consumida apenas como literatura e não como “boa literatura” ou “má literatura”? (como a crítica às vezes etiqueta de maneira burra).

A barreira maior é que essa literatura seja lida. Se ela for lida, já é meio caminho. Não somos lidos, nossos textos são sempre apreciados pelo contexto... falamos em mesas de debates e bate papo sobre tudo, contexto, discriminação, periferia, machismo, racismo, menos do texto literário. Eu estou sempre conversando e colocando literatura na conversa; não sou socióloga, antropóloga, historiadora, cientista social eu sou escritora! É isso. Precisamos que nossos livros sejam lidos, mais textos sejam divulgados, que o contexto de nossas falas seja por meio da leitura do que se narra nas histórias. O coletivo Mjiba fez essa provocação com uma campanha virtual em 2017 “procura-se leitores e leitoras de literatura negra feminina”. É isso que precisamos: sermos lidas. Sobretudo nós que estamos no submundo da invisibilidade querendo uma parte do bolo com nossos 500 a 1.000 exemplares debaixo do braço, como diz o Marcelino Freire; nós os escritores de sovaco. Fomos convocados a sermos escritoras, mas não avisaram que teríamos que abrir nossa própria loja: o livro chega somente onde a autora chega, se a autora é barrada na porta da livraria, o livro dela nunca será lido. Assim acho que nossas maiores dificuldades após para essa segundo fase [da literatura marginal] são a publicação dos livros e a distribuição do nosso material literário.


 

*Elizandra Souza, 37 anos, nascida em São Paulo e criada no interior da Bahia, semeadora de literatura negra  feminina, ativista cultural  há 18 anos. Escritora, jornalista, idealizadora do Coletivo Mjiba e integrante do Sarau das  Pretas.  Autora dos livros Punga (2007), Águas da Cabaça (2012), Filha do fogo (2020). Co-organizadora dos livros  Pretextos de Mulheres Negras ( 2013), Terra Fértil, Jenyffer  Nascimento (2014) e Narrativas  Pretas - antologia Sarau das Pretas (2020).


Acesse o Instagram da Elizandra Souza ou do Coletivo Mjiba clicando sobre os links acima.


E-mail: mjiba.comunicacao@gmail.com


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