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Um retraço de mapas antigos

\\ LIVROS

As Cidades Invisíveis resume ser uma grande realização poética na simplicidade da escrita de uma obra transbordando de coração em seu trato da língua

Por Bruno Pernambuco



Italo Calvino em Oslo, 1967 (Fotografia: Johan Brun).

As Cidades Invisíveis pouco diz sobre uma cidade — sobre sua estrutura, seus habitantes, sobre a vida que nela existe − e, assim sendo, simultaneamente diz tudo. É através da prosa mágica de Ítalo Calvino, que se esculpe a imagem a partir da simplicidade da linguagem, e da objetividade das observações e reflexões de seu Marco Polo, esse narrador que, pela sinceridade absoluta, se faz pouco confiável, que se afeta profundamente pelas cidades e que carrega sua emoção em sua ciência; que não desenha os mapas de suas viagens senão com princípios simples da geometria euclidiana, com linhas retas ou com curvas ilustradas por um compasso. Descrições iluminadas por uma luz simples e aconchegante, como a das lamparinas de rua da cidade que recebe um viajante compõe essa viagem circular, como o passeio por uma escada em caracol que aos poucos aprofunda-se na memória, desce pelo arquivo de livros num encontro de registros topográficos que desde sempre existiram, e que retratam esses espaços sob os pés do caminhante, aqueles que ele construía com sua caminhada.


Momento em que o escritor está liberto da organização da história, da encadeação, ou dos acontecimentos, As Cidades Invisíveis é uma criação positiva dessa ausência, uma exuberância de vida. Diz ítalo Calvino que “As Cidades Invisíveis continua a ser aquele meu livro em que penso haver dito mais coisas, talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjeturas”, e o que se enxerga em sua obra é de fato esse movimento − traduzido naquilo que faz a individualidade do autor − que escapa à racionalidade pura. Negando um tempo positivista ou objetivo ao resgatar uma forma literária do diário de viagens e do relato íntimo, As Cidades Invisíveis é uma viagem a essa vida que se repete, que rumina lentamente, e que se afirma mesmo pela calma dessa digestão. Não que ela se trate de um retrato com endereço preciso de uma vida interiorana; essa vida exprime algo que todos conhecemos, nos pondo, também, na posição de conhecer o próprio passado através da visita dos lugares desconhecidos. A forma como a prosa do livro reflete esses movimentos é a grande invenção poética de Calvino, e também seu trabalho muito apurado. É por conta dessa simbiose, do impensado com a descrição do signo, de tudo isso com a reflexão artística e laboriosa que se confunde com a reflexão dos acontecimentos da vida, que é dificílimo, senão impossível, pensar a figura do autor a partir de uma obra como As Cidades Invisíveis. Nela se confundem movimentos, inspirações e figuras literárias, e se enxergam muitas marcas da prosa de uma geração italiana da segunda metade do século XX, assim como uma continuidade das obras anteriores de Calvino, em seus personagens, temas, e época visitada, assim como uma quebra com essas mesmas obras, nessa descoberta de outros símbolos e formas narrativas. Trata-se do encontro que desde o princípio, por sua apresentação, pela ternura das palavras escolhidas e da precisão das descrições, nos convida para dentro daquele mundo, e com essa mesma beleza linguística permite que ele continue a se abrir, renovando-se. O leitor dessa obra vê à frente um livro que fala profundamente ao e com o coração, e nesse sentido é inútil partir dessa análise literária rigorosa, embora As Cidades Invisíveis tenha muito a ensiná-la.



A cidade, por toda a obra, é sempre desenhada pouco a pouco. É demorada, e é dada pela medida do humano, a construção desse símbolo, desse conflito, como mais uma vez admite o próprio autor, entre “a racionalidade geométrica e o emaranhado das experiências humanas”, que se irresolve em imagem poética. Colocar onde está a cidade enquanto espaço na escrita e na recepção de um livro como esse é perguntar como que esses poemas podem ser habitados, e na leitura essa questão está de certa forma resolvida, pois há algo em nós que habita esses lugares, que habita essas histórias, essa indefinição, uma simultaneidade entre presente e passado − o passado enquanto invenção, ou enquanto algo que aprendemos a partir da invenção. Me comovo até as lágrimas acompanhando simplesmente a toada, sob esse ritmo lento da história, contemplativa e, simultaneamente, direta, pois é narração dos acontecimentos, mesmo em sua confissão do não acontecido, sua divagação entre as imagens das imagens.

O romance histórico transforma, também, Marco Polo e Kublai Khan em personagens literários. Uma narrativa histórica, mas, mais do que isso, que se apropria da história conforme aquilo lhe é interessante, aproveitando um pretexto para contar uma história que é tão invisível à oficial quanto essas terras do império de Kublai Khan são a seu governante. Aí não se trata diretamente daquele saber ou daquela vida que é perseguido diretamente pela regulamentação, mas dessa história memoriável que surge a partir das nossas perguntas − aquelas cujas respostas que cada cidade nos dá é o que dela guardamos. Não conhecemos desse Marco Polo nenhuma personalidade exceto sua paixão pelas viagens, sua existência como uma folha em branco que é preenchida pelo que anota em seus diários, e sua lealdade com o imperador. Homem que, como admite, reconhece o pouco que tem através daquilo que não tem e que nunca terá, logo não se poderia imaginar um narrador melhor para essa narrativa, pois ele é quem se faz e compartilha viagens, e convidando o leitor a vive-las consigo. Para deixar que essas cidades provoquem em quem lê o efeito de ser um viajante que a elas chega, e que dentro de cada um desses mundos aprofunda-se em suas lembranças pessoais − e naquilo que de si descobre com esse encontro−, é preciso que o guia seja esse que segue a mesma caminhada, e que, não se dirigindo em seus escritos nem a si próprio, nem a quem o lê, faz aflorar esses encontros através da narração da sua própria descoberta, pois sua memória pessoal é o convite que a ele estendeu cada cidade, e sob ela está o conhecimento de que uma cidade só existe pelos olhos através dos quais é vista. É, também, sublime a forma com que o autor descreve as próprias consciências, e a reflexão de Marco Polo e de Kublai Khan, e ao tecer esse imperador curioso, preocupado, misterioso em seu estoicismo contemplativo de seu império, As Cidades Invisíveis convida para esse caminho fantasioso e elaborado, de um espaço único de possibilidade, que não teria lugar na realidade − ao mesmo tempo que nunca nega completamente a possibilidade de ser aquele verdadeiro factual, como a revelação de um segredo muito bem guardado sobre a vida de um império e de seus personagens. A história também é utilizada com maestria por Ítalo Calvino, assim como a geometria e a arquitetura para a construção desses lugares existentes, assim como sua irmã no plano linguístico, a sintaxe, ordenação dos elementos, para descrevê-los.


Uma síntese − da mesma forma que esse símbolo da cidade sintetiza muitas possibilidades diferentes, muitas aberturas para a história − de fluentes históricas, poéticas, cotidianas, precisas e universais, provincianas e cosmopolitas, As Cidades Invisíveis resume ser uma grande realização poética na simplicidade da escrita de uma obra transbordando de coração em seu trato da língua, e da rememoração daqueles caminhos feitos, daqueles reencontros com o que foi visto e dos encontros novos que, fazendo a lembrança, inventando o passado, são, também, por eles feitos. O que essa obra poderá dizer a respeito da cidade será, talvez, a lembrança içada em quem a lê, que alimenta novos modos de habitar-nos e de habitar em conjunto.


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TÍTULO: As cidades invisíveis

AUTOR: Italo Calvino

EDITORA: Companhia das Letras

ANO DA EDIÇÃO: 2017

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