\\ CINEMA
As suas imagens, a deliberação das rimas visuais e históricas que o diretor propõe, fazem do trabalho de Glauber emblemático de uma época e de um modo de pensar, e sua figura, em suas reflexões quanto à arte e a forma de produzi-la
Por Bruno Pernambuco
O Cinema Novo- sempre é perigoso deixar sob uma mesma égide uma eclosão cultural tão vasta, tão rica e infindável quanto o terremoto que passou pelo cinema brasileiro a partir do final dos anos 50, ma va bene…- trouxe uma revolução às imagens do Brasil, chacoalhando profundamente as certezas de um país que encontrava uma nova forma de olhar para si mesmo. A obra do baiano de Vitória da Conquista Glauber Rocha, trabalhando aquilo que seu companheiro de geração, Zé Celso Martinez Correa, definiu como “a constante reinterpretação de Os Sertões- o livro que inventou o Brasil”, tenha talvez se consolidado como a mais marcante dentro desse movimento vasto e transformador, ao menos em termos da recepção crítica, e não é à toa. As suas imagens, a deliberação das rimas visuais e históricas que o diretor propõe, fazem do trabalho de Glauber emblemático de uma época e de um modo de pensar, e sua figura, em suas reflexões quanto à arte e a forma de produzi-la - num momento em que o cinema começava a se estabelecer como arte verdadeiramente popular no Brasil, centro importante das discussões culturais do país, e com realizadores brasileiros- alimentou a possibilidade de trazer esse pensamento novo à práxis, num modo diferente de produção, fugindo dos grandes sistemas à época tão consolidados.
Dentre os grandes autores de sua geração, que chegou como uma transformação completa da vida cultural brasileira, a obra de Glauber é talvez aquela em que se vê mais marcadamente um pensamento regional, e que tem por tema o retorno a imagens e a formas de gravar caras a uma vida à sombra dos grandes centros econômicos regionais e nacionais. Porém o que realmente fazem essas obras de uma força universalizante, com imagens que evocam um profundo sentido poético, é acertar em cheio em elementos que são formadores do Brasil, e que foram pedra fundamental para a construção da ideia que se fez de país, e de unidade nacional. Terra em Transe e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro revolucionam a linguagem cinematográfica, expondo-a e saturando-a ao seu limite, para assim escancarar o que é essa vida não contada, movimento subcutâneo em uma unidade que é bamba, mal mantida, e que é fracamente atada por um decreto e pela invenção de uma história.
No grupo que forma o cânone moderno brasileiro- fortemente definido pela chamada “Geração Mimeógrafo”, que, nominalmente, começa a mostrar-se a partir do final dos anos 50- Glauber Rocha talvez tenha sido aquele mais pensou a respeito de seu meio artístico e também aquele que mais o transformou. As imagens que surgiram em suas criações permanecem, na memória popular, como algumas das que mais significam a respeito de uma vida e de um país, e ao mesmo tempo o legado do diretor não diz respeito apenas ao que foi diretamente resultado de seu trabalho. Todo o Cinema Novo brasileiro, rico quanto é em cada um de seus filmes, teve seu sentido sendo um começo, um ar novo de muitas ideias que fez abrir a porta para o cinema brasileiro, para que novos criadores pudessem pensar, e agir, sobre a arte, mesmo que muitas vezes isso tenha dado em algo que acaba por se colocar diretamente contra os princípios estabelecidos naqueles primeiros manifestos intelectuais que permitiram ao movimento crescer e tornar-se marcante- o risco de toda criação. Poeta que melhor soube trabalhar em uníssono os diferentes aspectos da linguagem cinematográfica, a lembrança de Glauber Rocha permanece hoje como inspiração, como alento que dá força para criar, e como uma possibilidade, aos artistas, de encontro e reflexão com seu próprio processo, e com a questão do que um filme tem a dizer àquele mundo, àquele país, àquele lugar e àquele tempo no qual aconteceu de ele nascer.
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