Só garotos
- Frentes Versos
- 22 de mai. de 2019
- 6 min de leitura
Atualizado: 10 de abr. de 2020
\\ LIVROS
Patti descrevia a si mesma como uma menina má tentando ser boa e a Robert como um bom menino tentando ser mau.
Por Humberto Tozze, Especial para Frente & Versos

Vissi d’arte, vissi d’amore – “vivi para a arte, vivi para o amor”-, foi ao som de Tosca, de Puccini, que Patricia Lee Smith recebeu a notícia da morte de seu grande amigo e parceiro de anos, Robert Mapplethorpe.
É em uma manhã congelante de março que sua obra, Só Garotos, tem início. Patti Smith – como hoje a conhecemos -, já estava casada com Fred Smith, guitarrista da banda de punk rock, MC5, e com dois filhos pequenos. Um distante percurso de quando se mudou para o coração de Nova York em busca de uma vida que se resumia em uma vida pela arte.
Descobriu seu amor pelas palavras quando aprendeu a rezar. Não mais quando repetia as poucas palavras de sua mãe, “Agora que vou dormir, peço ao Senhor que cuide da minha alma.”, mas quando aprendeu a criar suas próprias orações. Filha de pais testemunhas de Jeová, a espiritualidade, mais do que a religião teve papel fundamental em sua mitologia particular. Logo, suas rezas se tornaram longas cartas para Deus. E aos poucos, os livros e a poesia tomaram lugar das antigas orações.
Ainda muito pequena, sofreu sua primeira perda. Sua melhor amiga de infância, Stephanie, falece em decorrência de leucemia. Suas palavras passaram a ser dirigidas à pequena jovem que havia partido. Repetia essa história para Robert, que pela falta de histórias de sua infância tomava as de Patti emprestadas.
Mais velha dos quatro irmãos, Patti cresceu em uma família de classe média do pós-guerra, na zona norte de Chicago, em uma casa de cômodos abarrotados na Logan Square. Em seguida, mudou-se com a família para Pensylvania e após serem despejados, seguiram para o sul de Nova Jersey.
Ao encontrar uma carteira perdida com 32 dólares, realizou seu desejo e embarcou para Nova York, aos 20 anos, deixando para trás uma vida pacata, de subempregos, para concretizar a missão de tornar-se artista. Naquela altura, havia abandonado as aulas no Centro Estadual de Formação para Professores e já havia tido um filho, quem em razão de sua imaturidade, deu para a adoção. Embarcou para Nova York, levando uma mala xadrez e um exemplar surrupiado de Iluminações, de Arthur Rimbaud.
Com a esperança de ser acolhida por alguns amigos até encontrar um lugar na cidade, descobre ao chegar que seus únicos contatos na cidade haviam partido. Foi então seu primeiro encontro com o jovem Robert, novo morador do único endereço que Patti tinha em mãos.
Era um jovem pálido e magro, com grandes cachos castanhos, assim o descreve, ao encontrá-lo dormindo no quarto em que supunha ser de seus amigos.
Os dias seguintes – os primeiros em sua nova cidade – foram marcados por muita dificuldade, fome e encanto. Com a mala escondida no Brooklyn, a jovem tomou como acolhida os parques da cidade, as estações de metrô e até mesmo o cemitério, enquanto vagava preenchendo formulários de emprego e em busca de comida.
Alta e magricela, com estilo bailarina beatnik, como se auto definia, Patti, flutuava pela cidade, sentindo-se segura e camuflada meio a tanta diversidade, repetindo o mantra de que estava livre e, portanto, tudo ficaria bem. Em um misto de entusiasmo e desespero, vivia tudo aquilo que durante tanto tempo romantizou, até mesmo a pobreza. A energia de Nova York no fim dos anos 60 e começo da década de 70 parecia o cenário perfeito para que a jovem Patti – representação da contracultura e da geração beat – cumprisse seu destino de ícone do punk rock.
Finalmente, quando consegue um emprego na livraria e loja de joalheria étnica, Brentano, reencontra o jovem de cachos castanhos. Robert entrou na loja e comprou seu colar persa favorito. Foi antes de partir que a jovem o fez prometer que ele não daria o colar para nenhuma garota que não fosse ela. Promessa que se fez cumprida algum tempo depois.
Apenas no terceiro encontro acidental que Patti e Robert passaram a venerar um ao outro e não se largaram mais.
Robert Mapplethorpe, nasceu no mesmo ano que Patti, em 1946, no Queens, em Nova York e cresceu em Long Island. Era um desenhista nato e um tanto tímido, apesar de suas ambições, e que, assim como Patti, vislumbrava um caminho em que pudesse dedicar-se apenas à arte. Ao se descobrirem, selaram então uma relação de parceria que durou até o fim da vida de Robert.
Com muito aperto, conseguiram juntar algum dinheiro e alugaram um apartamento na Myrtle Avenue, no Brooklyn. Foi esse o primeiro lar dos dois artistas, que criaram naquele espaço um misto de ateliê e templo de adoração de seus grandes mestres, como Bob Dylan, John Lennon, e na literatura poética, Arthur Rimbaud, Jean Genet, entre tantos outros.
A cumplicidade entre o casal favoreceu um ambiente de entusiasmo e criatividade. Robert desenhava, criava instalações e gravuras. Assim como Patti, que também desenhava e escrevia, além de carregar nato talento como contadora de histórias.
Após idas e vindas, Robert passou a explorar o seu desejo por outros homens. E ao retornar de São Francisco após o rompimento entre o casal, Robert assumiu sua sexualidade para Patti. A ideia da homossexualidade era desconhecida por ela, que sabia apenas por meio de seus poetas favoritos. A partir da revelação e do desejo de estarem juntos, tiveram que moldar a relação, prolongada pelo amor que tinham. E prometeram um ao outro que não se abandonariam, com o lema de livres, porém leais.
Patti descrevia a si mesma como uma menina má tentando ser boa e a Robert como um bom menino tentando ser mau.
Em anos de muita privação, os dois mudaram constantemente até chegarem ao histórico Hotel Chelsea, afamado por abrigar artistas como os poetas Allen Ginsberg, Dylan Thomas, ícone do rock, Janis Joplin, o escritor Mark Twain, entre outros. E foi lá que firmaram residência.
Patti, curiosamente, ficou conhecida na música antes de ser revelada mundialmente como poeta e artista multigênero. Sua ligação com o rock’n roll deu-se quando passou a escrever críticas musicais para as revistas Circus, Grawdaddy e Rolling Stones e compor canções para outros artistas. Robert, por sua vez, tornou-se conhecido muito mais por suas fotografias do que pinturas e instalações.
Foi em 1971 que Patti Smith realizou uma leitura cantada de poesias por meio do Poetry Project, ao som da guitarra de Lenny Kaye – que viria compor a banda Patti Smith Group. A partir dessa experiência surgiram os diversos convites, inclusive a primeira proposta de gravar um álbum. Em 1975, com sua banda, gravou o disco Horses. E com o segundo álbum, Easter (1978) e o single, escrito em parceria com Bruce Springsteen, Because the Night, que alcançou sucesso comercial.
Mapplethorpe, por outro lado, contou com a ajuda do curador de arte, Sam Wagstaff, seu mecenas e companheiro até seus últimos dias. Ao migrar da pintura para a fotografia, seus temas estavam atrelados à identificação de sua sexualidade; o homoerotismo e o sadomasoquismo eram recorrentes nas fotografias mais conhecidas. E muitas vezes, a própria Patti Smith era tema de suas obras.
Aos 42 anos, em 1989, Robert falece, em razão de complicações da AIDS, irrefreável naquela época. Patti já esperava pela notícia quando foi informada pelo irmão de Robert, Edward. Nesta época, estava vivendo entre Nova York e Detroit. Foi em sua homenagem que escreveu a canção Memorial Song, uma elegia para a amizade.
Antes de Robert morrer, Patti prometeu que escreveria a história da relação que tiveram, o que cumpriu em 2010, ano em que publicou Só garotos.
Pouco tempo após a morte de Robert, em 1994, ano em que Patti perde seu marido, ela retorna para Manhattan e se muda novamente para o Hotel Chelsea, revivendo todos os lugares por onde havia passado em sua juventude.
A obra tornou-se marco de uma era em que Nova York reviveu a Paris boêmia do século XIX. Rememorando a atmosfera de melancolia e expectativa de glória de artistas aspirantes, em que o espírito da poesia renascia através do rock’n roll. Em que Patti saiu como sobrevivente de sua própria geração, marcada por excessos e desenfreado uso de drogas. Para além disso, a obra tornou-se manifesto do amor de Patti Smith por Robert Mapplethorpe.
O título em questão se revela por meio de um relato sobre um passeio pela Washington Square. Os jovens andavam pelo parque com seus trajes prediletos, quando foram notados por uma senhora muito mais velha que disse ao senhor ao seu lado que deveriam tirar uma foto daquele excêntrico casal, pois pareciam famosos. O senhor em desprezo à sugestão, disse que não, afinal eram apenas garotos.
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