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Foto do escritorFrentes Versos

Símbolo de resistência, figura de Federico García-Lorca foi marco do escultor Flávio de Carvalho

\\ ARTE

Polêmica, obra em homenagem ao poeta espanhol foi 'sequestrada' pela repressão no século passado

Maria Eduarda Guedes Beozzo Frasson*, colaboração para Frentes Versos

O monumento na Praça das Guianas, em São Paulo. Foto: Acervo Preservação/DPH/SMC, Chico Saragiotto.

Em um cenário se observa a remoção de muitas obras escultóricas, que trazem figuras autoritárias, de espaços públicos, o monumento Federico Garcia Lorca vem em um sentido contrário dessa toada.


Na primeira metade da década de 1960, o cenário político brasileiro enfrentou um golpe de estado organizado pela extrema-direita que deu início à Quinta República, durando 21 anos em sua totalidade. Esse período conhecido como Ditadura Militar foi marcado por fortes características antidemocráticas, por extrema censura e por perseguições que envolviam tortura e eliminação em massa daqueles contrários às ideologias do Governo. Foi nesse contexto que, o artista brasileiro Flavio de Carvalho (1899-1973) homenageou o espanhol Federico Garcia Lorca (1898-1936), um dos poetas mais importantes do século passado, produzindo um monumento modernista localizado atualmente no bairro dos Jardins, em São Paulo.


Criador múltiplo, Federico García Lorca ficou conhecido por seus feitos revolucionários no teatro ao explorar todas as suas modalidades, dos fantoches à experimentação vanguardista, acrescentando-lhe música e dança. Embora sua genialidade em vida, Federico fora homenageado em decorrência da sua morte precoce aos 38 anos.


Em um período de extrema polarização política, com inúmeras guerras e tensões ao longo dos continentes, em 1936 a Espanha enfrentou um conflito armado, que teria durado três anos, entre as tropas franquistas simpatizantes do nazi-fascismo e a recém-instaurada república espanhola com viés socialista.


O poeta Garcia Lorca, não era vinculado a ideologias ou partidos políticos. Dizia-se um homem apartidário que lutava contra a opressão ao lado das minorias. Mesmo assim, embora existam controvérsias sobre os motivos e os detalhes do seu assassinato, variando desde motivações pessoais até sua orientação sexual, há fortes indícios de que teria sido morto por forças franquistas, durante a Guerra Civil Espanhola, sob acusação de ser comunista. No ano em que o poeta completaria 70 anos, exilados espanhóis membros do Centro Cultural Garcia Lorca, em São Paulo, resolveram homenageá-lo com a obra do artista plástico Flávio de Carvalho.


Também criador múltiplo, Flávio de Carvalho foi um dos grandes artistas provocadores da sociedade na época. De pintor e engenheiro à escritor e diretor teatral, o artista carregava uma forte característica polêmica em suas obras, desde críticas à sociedade até analises psicológicas, e através dessas características desenvolveu o que viria a ser o monumento em homenagem a Federico Garcia Lorca.


O monumento, em sua totalidade, consiste na composição de tubos de ferro, chapas metálicas recortadas e alvenaria. Esses materiais eram soldados e tingidos com as cores preto, branco e vermelho. Todas as peças de metal, antes da solda, passavam por um processo de galvanização que ampliava a camada protetora, a fim de evitar a corrosão, e, posteriormente, era soldado e pigmentado. Na chapa metálica encontra-se a estrofe do poema La álamos de plata (os choupos de prata) do próprio Garcia Lorca. Nela, ligam-se os diversos tubos de ferro que se dispõem espacialmente como flechas ostentando uma flor avermelhada no ponto mais alto da escultura.


Inaugurada em outubro de 1968 na Praça das Guianas, a obra não ficou por muito tempo na praça pois meses depois, com a publicação do Ato Institucional nº5 (AI-5), passou a ser proibido quaisquer atividades ou manifestações sobre assuntos de natureza política. Rememorando o contexto espanhol que teria tirado a vida do homenageado, a escultura tornou-se alvo de radicais de direita e, na madrugada de 20 de julho de 1969, uma explosão danificou-a. Os destroços foram levados a um depósito da municipalidade.


Em 1971, após ser reparada com muito esforço pelo próprio Flávio de Carvalho a fim de leva-la à Bienal de Arte de São Paulo, o monumento sofreu diversos insultos durante o evento e, sem o apoio das autoridades responsáveis, foi colocada do lado de fora do prédio, no Parque Ibirapuera, onde ficou por apenas dois dias. Com a reclamação do embaixador da Espanha incomodado com a presença da “escultura comunista”, a homenagem a Garcia Lorca voltou ao depósito e lá, foi abandonada por anos.


Dispostos a devolver a obra ao espaço público, em 1979, alunos da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), ambas da Universidade de São Paulo (USP), teriam se reapropriado da escultura. Após 3 meses de restauro, num ato, aproveitando a presença do prefeito da ditadura militar, instalaram-na no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (MASP), tornando-a, devido a sua história de censura, um símbolo da luta contra o regimes militares e autoritários.


Com o passar dos anos, a escultura em ferro forjado apresentou corrosão, despigmentação das cores, letras faltando, trincas e fissuras. Passou por restauração, que incluiu a retirada de camadas de tintas e a substituição das peças enferrujadas, e voltou para a Praça das Guianas na zona Oeste de São Paulo, seu lugar de origem, no centésimo aniversário do poeta, em 1998. Atualmente, obra continua sendo cuidada e permanece nesse lugar sem mais conflitos.

À primeira vista, a chapa metálica disposta na frente da escultura se destaca. Nela encontra-se gravado de branco no preto, partes do poema “La álamos de plata” escrito pelo homenageado:


¡Hay que abrirse del todo

frente a la noche negra,

para que nos llenemos de rocío inmortal!


Quase um hino de guerra, a tradução do refrão do poema trata-se de um protesto de dor e incentivo à luta contra a repressão imposta num período obscurecido por ideias antidemocráticas - noche negra.

Além do próprio poema, a chapa portadora da estrofe liga os diversos tubos de ferro que se dispõem como flechas, também representando metaforicamente essa luta à procura da liberdade digna e inexorável ao ser humano. O conjunto das peças constituintes da obra remetem à simbologia dessa batalha contra a tirania e a opressão vivenciadas, tanto no contexto espanhol de guerra civil quanto na Quinta República Brasileira.


É, portanto, além de uma homenagem à dinamicidade da vida de Federico Garcia Lorca, uma alusão à morte do poeta e, com ele, a diversas mortes sob mesmo pretexto antidemocrático e cruel de opositores brasileiros sendo enfim, um símbolo de protesto contra a repressão.


Desta forma, a escultura de Flávio de Carvalho apresenta uma figura importante na cultura expondo a mesma como um lugar de resistência. Em cenário de as discussões atuais sobre a necessidade da remoção de obras que apresentam figuras antidemocráticas de espaços públicos, a obra e a homenagem seguem na contramão desse cenário pois o nasceram sendo censurados e agora, mais do que nunca em tempos de mais noites negras, necessitam ter sua permanência e sua visibilidade ressaltadas.


*É aluna do curso de Arte, História, Crítica e Curadoria da PUC-SP

(Os textos de colaboração não expressam necessariamente a opinião da Frentes Versos)


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