\\ LIVROS
licença para semear, caçar e se alimentar. Licença para contar histórias. São em versos áridos que o livro é composto.
Por Vitor Resquin*, colaboração para Frentes Versos
Árido porque já não é mais. Árido enquanto o ponto de partida: o princípio da terra seca e poucos sonhos para serem cultivados. A potência do mais velho, transforma e decompõe tudo à sua volta. Obaluaiê – peregrino, o grande curador ferido, dá a lágrima aos que contam com pouca chuva. De tudo aquilo que a boca come, recomposto, sempre volta ao seu lugar.
A semente que rasga a entranha da terra invoca o caçador. Aquele que não busca morre antes de nascer. Todo corpo vivo guarda uma sede. No processo de crescimento, ramas, matas e prados, apresentam novos perfumes, afetos e mistérios.
A chuva, o orvalho e o leito do rio mostram o caminho até a fartura. Odé é quem guia. O encanto se dá enquanto percurso e não se finda em objetivo. "Devagar também é pressa". A semente tem seu tempo e a peneira conta canção de ninar feito criança embalada no peito.
Diante da caça apenas se é espelho: a permissão da caça é quem faz o caçador – licença para semear, caçar e se alimentar. Licença para contar histórias. São em versos áridos que o livro é composto. Em tentativa, reflete o meu espelho: a minha avó e suas narrativas. Senhora de muitas rezas e poucas palavras. De maneira concisa, como a flecha em disparada, trago um punhado de palavras, linguajar e memórias – feito flores em um buquê-morto, cada uma colhida em anos passados.
O deslocamento de Minas Gerais à São Paulo – ao lado de meu desconhecido avô-guarani das terras do Paraguai. A infância, a aridez, o sonho-semente, a necessidade de partir, a viagem, a solidão, a labuta, a idade, a fotografia e por fim, a memória. A palavra dita que nunca cessa sua voz ao vento, permitindo o ciclo do xirê.
Me disse uma vez minha avó que "Não se morre um quilômetro de onde se nasceu", assim, só se chega sabendo que um dia já foi e quando chega, saudade da seca. O sentido é voltar, enredar-se ao erro, ao errante, ao gaguejo, à dúvida. Não existe futuro sem nossos avós – nossos baobás, sentinelas das pontes entre o passado e o presente. A manutenção da oralidade, dos saberes ancestrais, de nossos mestres e mestras: são muitas as histórias, mandingas, encantarias, quebrantos, benzimentos, rezas e tradições que nos guiam. É de negar a palavra exata, zelar o mistério, e escrever como quem reza baixinho, feito sussurro de criança em noite escura. Lágrima colhida em contação de história, palavra soprada mantida em brasa.
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TÍTULO: Árido
AUTOR: Vitor Resquin
EDITORA: Editora Penalux
ANO: 2020
*Vitor Resquin, poeta, angoleiro e educador. De Embu das Artes a São Paulo, a infância. Filho de um casal da zona leste paulistana: do pai, a maldição do samba; da mãe, o terreiro; da vida, a capoeira. Autor de Naufragar como Verbo (2017, Editora Reformatório) e sua mais recente publicação Árido (2020, Editora Penalux), ambos livros de poesia.
(Os textos de colaboração não expressam necessariamente a opinião da FV)
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