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[Resenha] Sob influência de Camus, escritor Kamel Daoud arquiteta "Novos Estrangeiros"

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Daoud lapida com a precisão de um mestre essa jóia bruta e selvagem da memória, e esse mergulho em espiral é como uma jornada que se abre continuamente, sem desfecho e sem esperança de encontrar desfecho.

Por Bruno Pernambuco

O escritor Kamel Daoud, autor de O Caso Meursault. Foto: Bertrand Langlois/AFP.

É sempre muito difícil falar sobre um clássico, especialmente sobre um clássico moderno, que reflete quanto a seus próprios papeis, de narrativa, de autor, e sua posição diante do mundo. O que “O Estrangeiro” ainda tem a dizer em um mundo completamente do seu, e que lida de outra forma com as ruínas da crise que o livro anunciava? Como essa obra pode, ainda, mover em um jovem escritor algo que lhe impulse a escrever? Acerta o jornal Le Monde, ao dizer que “no futuro, O Caso Meursault, de Khamil Daoud, será lido como um par de O Estrangeiro”. Livro belissimamente escrito, e cheio de méritos literários por si só, O Caso Meursault é, também, uma atualização desse cânone, e uma palavra nova desse livro que, parafraseando Ítalo Calvino, “nunca deixa de ter o que dizer”- mesmo sendo sua completa inversão, a história subcutânea que é trazida à tona, a reversão do mundo do antigo protagonista que leva no título.


A prosa de Daoud, tão agradável e filosoficamente densa quanto a de Camus, é atravessada pela diferença. Haroun, protagonista da obra, narra a história de uma vida que cresce à sombra de uma morte que só agora ganha nome- Moussa, seu irmão. A descrição imaginativa, crua e simultaneamente poética, da vida na penúria da Argélia colonial, é uma marca do estilo literário próprio da obra, e uma imersão profunda do leitor naquele mundo. A tarefa de encarar Camus de igual para igual não é nada fácil, e, dita, não pode passar como mais que um delírio. A maior qualidade de O Caso Meursault está em, com seu abraço, pela naturalidade daquele mundo e das histórias que são contadas, fazer com que o leitor perceba que essa proposta nunca existiu realmente, e que o que está ali escrito não é uma resposta direta ao cânone. A história contada é, afinal, a de Haroun, não a de Meursault, ou mesmo a de Moussa. O caso do assassinato serve de disparador para a narração de toda uma vida colorida pelas sombras daquilo que em O Estrangeiro o protagonista regurgista. Essa história contada em forma de rememoração- por meio da conversa com o entrevistador/interrogador não nomeado- sem ação, e sem futuro, serve como um expurgo para o leitor, uma forma de reafirmar tudo aquilo que aconteceu, e toda a incerteza da vida individual, através da palavra. Daoud lapida com a precisão de um mestre essa jóia bruta e selvagem da memória, e esse mergulho em espiral é como uma jornada que se abre continuamente, sem desfecho e sem esperança de encontrar desfecho.


Ler hoje O Estrangeiro, presumivelmente, não provoca um impacto, uma aflição e um desterro interior, menores que no passado, mesmo numa época em que as feridas históricas que envolvem a narrativa estavam mais abertas. Como um verdadeiro clássico, a obra nunca deixa de dizer algo novo, mas também tem de se haver com o abismo da memória, e com as histórias que ela mesma não conta. Desse choque explosivo nascem novos sentidos, inclusive do livro original, transformado por essa carta distante, a ele endereçado… Mas quanto a isso é Hegel que poderia dizer alguma coisa, ou talvez já tenha o feito.

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