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Sempre Acaba Igual que Como Começa

\\ TEATRO

Assim como na obra literária de Ariano Suassuna, o necessário é rever, reaprender a linguagem e a tradição popular para poder falar a partir de sua sabedoria tão esmerada.

Por Bruno Pernambuco

Cena de A Pedra do Reino, foto de Emidio Luisi.

A memória é como essa incongruência, entre o acontecimento, a esperteza, a invenção, as segundas opiniões a respeito da realidade, e a história que se quer escrever. Navegar por esses contrapontos está muito ligado à sabedoria popular, às formas de pensar, e às reflexões, que nascem da tradição e com ela lidam, e que expressam algo construído ao longo das gerações e que assim se refrata de formas muito peculiares nas individualidades.


A Pedra do Reino conta a história de uma história verdadeira perseguida pela história oficial. Misturando romances de Ariano Suassuna - o texto do drama parte de O Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta e Histórias do Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: ao Sol da Onça Caetana - a obra de Antunes Filho retoma uma mitologia do sertão através de outros meios e atirando-lhe, sabidamente, em outros contextos. Assim, assume um significado completamente particular a afetação das atuações, a acentuação dos gestos, a busca pelo movimento coreografado - e se estabelece num jogo extremamente rico e interessante à contraposição entre o rigor milimetricamente elaborado, a definir cada passo e cada intervenção que interrompe a narração linear, e a exuberância, o jogo dos tons e o uso dos estereótipos estabelecido pelos figurinos e pela construção das personagens.


Assim Quaderna, o personagem principal, e sua nobilíssima dinastia metem-se nas intervenções do governo federal, na disputa entre famílias pelo poder na Paraíba. Tanto por sua primazia no ponto de vista da narrativa quanto pela emoção que desperta no público, é ele quem rouba a cena dessas histórias, e nos interessa muito mais o que o personagem tem a dizer a respeito delas do que o desfecho oficial, e seus efeitos para ordem instaurada dos acontecimentos. Essa conquista é uma marca não só das excelentes atuações que envolvem todo o projeto, mas do quão bem executada é toda a composição que permite que essas explanações se alojem em nós. É uma construção muito autoral que Quaderna elabora ao olhar para o seu próprio abismo, e é a delicadeza de todas essas colocações que desperta no público a reflexão e que nos faz caminhar ao lado desse narrador que, num sorriso quase irônico, quer sempre se apresentar pouco confiável, nunca convencendo totalmente.


Como é bem notado na descrição da peça no acervo do Sesc, Quaderna é um personagem que brinca entre arquétipos literários, representando a astúcia e a engenhosidade do trapaceiro ao mesmo tempo em que tem a descendência real e, com isso, o peso do compromisso daquele herói que deve consertar o errado e reclamar o trono. Essa composição cria um retrato único, e um personagem capaz de expressar muito bem aquilo que provém de algo único do seu país e da sua região. Trata-se realmente de um grande personagem, rico, infindável, e que com a elaboração da linguagem posta em prática nesta montagem, encontra uma maneira única de se apresentar. A Pedra do Reino é uma empreitada soberbamente inteligente, que, como seu protagonista, sabe conquistar pela alegria, que muito sabe a respeito dos meandros do convencimento, da invenção, da astúcia, e assim é capaz de apresentar um sem-fim de complexidades que envolvem um personagem e, a partir dele, uma classe, um local, um país, uma tradição, disfarçadas na exposição mais direta, e mais simples. Assim como na obra literária de Ariano Suassuna, o necessário é rever, reaprender a linguagem e a tradição popular para poder falar a partir de sua sabedoria tão esmerada. Esse esforço tem tons de festa, de sarcasmo, de comicidade, de devoção, de jocosidade, de reflexão, de esperteza, de uma ação muito sagaz do intelecto e de uma escuta profunda.


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[Assista aqui à Quaderna, além de poder acessar outros espetáculos realizados pelo Centro de Pesquisa Teatral e materiais de arquivo da obra de Antunes Filho disponibilizados pelo Sesc São Paulo]

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