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Retratos de uma cidade em cacos

  • Foto do escritor: André Vieira
    André Vieira
  • 21 de jun. de 2020
  • 3 min de leitura

\\ CINEMA

Largos, lojas, lajes se erguem diante de nós e revelam os cacos e pedaços de vivências, experiências e histórias que formam o mosaico colorido da cidade.

Por André Vieira


Poster do filme Meio Irmão, de Eliane Coster

O sinal da escola ecoa; os vendedores ambulantes anunciam os melhores produtos do ponto; o almoço está servido: arroz, feijão, mistura de carne de e linguiça, dois litros de refri’ pra arrematar a refeição; o celular toca, mas ninguém responde — mãe? Mamãe? Mãe? Quando você volta?; o vocalista embala três graves potentes, o baterista martela com força a pele dos tambores, o êxtase embala a plateia; um amigo dublê mostra o que aprendera no curso mais cedo, duas línguas conhecidas se enlaçam num beijo, um vídeo é filmado de longe — a noite promete. Ambientado nos contornos urbanos de São Paulo, Meio Irmão desvela as histórias invisíveis de sonhadores cansados, otimistas desesperançosos e pessimistas confiantes que dormem, acordam e dançam estático da selva de pedra: um bolero místico que mistura o som de crianças jogando bola no portão de casa, com os carros na rua.


Passado no subúrbio periférico, a história se concentra no desaparecimento da mãe de Sandra, jovem adolescente branca moradora da Zona Leste que faz de tudo para reaver a mãe e colocar ordem no caos que habita a vida da casa e sua própria, em meio a desventuras e aventuras clássicas da meninice. Assim é através dos olhos de Sandra, que percebemos as cercanias urbanas: largos, lojas, lajes se erguem diante de nós e revelam os cacos e pedaços esparsos de vivências, experiências e histórias que formam o mosaico colorido da cidade. É no quadro multicolor que somos apresentamos às outras personagens da trama: sua melhor amiga Giulia, seu pai biológico, seu padrasto, e seu meio-irmão, Jorge, que a auxilia e a reconforta emocionalmente na busca pela mãe desaparecida. Mas não é apenas a adolescente que fica nos holofotes. Jorge, seu meio-irmão negro, roqueiro e formado como eletricista pelo Sesi também apresenta suas perspectivas sobre a cidade que mora: o trabalho que realiza como instalador de câmeras de segurança, os romances proibidos que enseja numa sociedade altamente machista, as percepções sobre a situação árdua que a irmã vive em busca da mãe. É graças a essa multiplicidade de pontos de vista, de narrativas e percepções, de ambiguidades e dualidades, de pesos e contrapesos, sobretudo encarnada na figura dos meio-irmãos Sandra-Jorge que o longa ganha força, e consolida a importância das demais personagens, que neste ponto, se tornam igualmente importantes — senão mais — do que a própria busca pela mãe que não retorna.



Cena de Meio Irmão. Foto: Reprodução / YouTube / CP

Assim, por essa característica central em Meio Irmão, em que os personagens e seus personagens se entrelaçam numa coisa só, onde não há começo, nem fim, apenas um plano sequência em que novos personagens são acrescentados à narrativa conforme a história principal se desenrola, fica difícil não ver ligação do longa de Eliane Coster com o livro Eles eram muitos cavalos, do escritor mineiro Luiz Ruffato. Primeiro porque, como na já-clássica obra de Ruffato, há uma identificação direta entre o leitor e as personagens que fazendo com as histórias e vivências deles, seja na tela, seja nas páginas do livro, estejam diretamente relacionadas a nossas experiências de vida moldando, sobretudo, um certo sentimento de nostalgia e identificação com aquele cotidiano. O segundo ponto se dá, porque a Coster captura com minúcia e exatidão as pequenezas do cotidiano, uma essência que vai além da encenação cênica ou recorte de câmeras, que coloca centro da narrativa os pequenos detalhes passam batidos pelo ritmo frenético da cidade ou pelas meia-relações que tecemos em nosso dia a dia — embora não as reconhecemos, elas estão ali; esperando o momento certo para serem redescobertas.


O longa foi destaque na 42ª edição da Mostra Internacional de Cinema, de 2018, e recentemente teve sua première no circuito alternativo de cinema, em março, embora não tenha ficado muito tempo em cartaz devido ao avanço do Covid-19 no País e, consequentemente, ao fechamento das salas de cinema em São Paulo. Contudo, a fim de propagar sua promoção a produtora Oka Comunicações, juntamente com a distribuidora, a O2 filmes disponibilizaram o longa em plataformas de stream alternativas a Netflix, Amazon Prime e Hulu, como GooglePlay, Looke e naquelas mais próximas do público de televisão, caso da Net(Now) e da Vivo.

Por fim, o longa surpreende tanto pela escolha de elenco, que segundo Coster, em entrevista à Folha optou por buscar atores em início de carreia ou de jovens promessas que participaram de oficinas artísticas na periferia, tanto pelo retrato produzindo, fotografando uma cidade inóspita movimentada pelas paixões, aspirações, angústias e medos de suas personagens. Em tempos de encarceramento coletivo forçado devido ao Covid-19, Meio Irmão se mostra uma alternativa para reviver as emoções e desalentos próprios do caos da maior metrópole da América Latina.

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