\\ CINEMA
Em Tokyo-Ga, Wim Wenders volta o olhar para profundamente dentro de si, mirando a maior referência, aquela lembrança doce, a joia rica, infindável nas suas lapidações.
Por Bruno Pernambuco
[Em comemoração aos 75 de Wim Wenders, o serviço Belas Artes à la Carte disponibiliza, a partir de 13 de agosto, clássicos da filmografia do diretor. Frentes Versos acompanha os lançamentos semanais do especial.]
Só é possível ler os filmes de Yasujiro Ozu naquela certeza dos dias, naquele detalhe ao olhar para as coisas, naquela sabedoria de que estar perdido é encontrar-se. As transcrições do tempo - da comédia familiar, à remissão curta do trauma, à história que interliga dramas da vida em família - não só são sempre contadas com paciência; são narradas com a presença dessa vida que é, simultaneamente, tão presente quanto é tudo que existe (uma pedra, o vento, um templo, uma mesa de chá) e é a presença daquilo que se manifesta dentro de nós; dos muitos que cada um é querendo falar ao mesmo tempo; dessa decupagem lenta do sentimento que também acontece à nossa margem, sem ser percebida, e que diz mais, ou quase tanto, a respeito de nós quanto aquilo que somos.
Em Tokyo-Ga, Wim Wenders volta o olhar para profundamente dentro de si, mirando a maior referência, aquela lembrança doce, a joia rica, infindável nas suas lapidações. Essa arqueologia do cinema retorna ao momento em que ainda havia o nada, em que a observação lenta, a passagem parca dos momentos e a câmera mínima de Ozu encontravam o tempo de sua linguagem, no fenômeno histórico determinado, para construir essa revolução do olhar cinematográfico. A memória do “anjo Yasujiro”, assim laureado em Asas do Desejo, é certamente a de um artífice, de um inventor do cinema, de um mestre do chiste, que disfarça evidenciando tudo a seu nível mais direto, mais claro. Os filmes do mestre, e seus personagens, estão sempre no mesmo plano da realidade que nós, espectadores, mas para descobrir a seu respeito o documentarista preciso ao mesmo tempo negá-lo e entrar na saturação tonteante do anúncio de neon, na rapidez da imagem transitória.
A busca sentimental indefinidamente se abre em novos espelhos. Vão surgindo outras imagens de imagens. As cores berrantes e chamativas abrem-se sempre em novas. Essa lembrança é ter nas mãos a velha foto, empoeirada, e atentamente observá-la renovando-se em nova, digitalizada, novamente definida, como se um mapa da velha Tóquio servisse para ler as linhas da mão da cidade que tão violentamente mudou de destino. A imagem se dissolve na perda daquele centro que um dia lhe serviu de direção, de rumo, de endereço — quando a precisão de um lugar fazia sentido. A imagem cinematográfica, quanto mais potente em sua captura, mais detalhada e ampliada em todas as direções em relação à relíquia guardada pelo filme da velha 50mm, imóvel e sem distorções, mais confinada está. O estouro das cores berrantes, o impacto dos flashes e o contraste das luzes, explodindo cada uma em uma direção, atacam nossos sentidos. Se a investida também deixa as marcas do seu tempo peculiar da vida, como é o das luzes piscantes na máquina de fliperama, simultaneamente no plano, assim como na fotografia das grandes cidades, aquele personagem onde nos enxergamos vai se tornando uma nota cada vez mais minguada, e aqueles seus detalhes — do tom de voz, nas expressões, nas suas roupas, no gesto - que são o cinema de Ozu- ficam enclausurados nesse lado manco da memória, sem encontrar aquilo que só a forma do cinema pode dar para aprendermos a nosso respeito.
Estar em Tóquio, e vê-la, é muito mais que a mera perseguição a um rei Midas, aquele que transforma tudo que toca em Ozu. Tokyo-Ga é uma obra que não foge à contradição e à aspereza do passado, mesmo em sua pergunta incessante, se ainda é possível ser nostálgico. Talvez o passado tenha de fato abandonado de forma tão súbita o presente que não seja possível nem mais lhe sentir saudades, ou talvez ele se mostre apenas nesses atravessamentos curtos, numa teimosia que se irrompe diante do fluxo, numa lembrança morta que tem de ser retraçada por quem ficou, ou numa contradição tão pacata, e de uma alegria tão simples, que traduz aquilo que se queria dizer melhor do que jamais se poderia imaginar. Assim o trabalho do diretor oscila por essas múltiplas posições, e por essa tarefa ingrata, de ser o olhar onipresente, que tem de inventar-se a si próprio. E a criação segue, um pouco entre a escultura do tempo, um pouco entre a edição da imagem e um pouco, simplesmente, em espantar-se.
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