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Foto do escritorMatheus Lopes Quirino

Publicado há exatos 130 anos, obra-prima de Oscar Wilde foi um aceno à modernidade

\\ LIVROS

Com edições censuradas, ‘O Retrato de Dorian Gray’ atravessou décadas do puritanismo inglês e se espalhou pelo mundo como marco literário da história moderna

Por Matheus Lopes Quirino


FOTOGÊNICO. O Autor em pose vestindo uma casaca de inverno (reprodução).

Oscar Wilde anda por seu casarão com capas esvoaçantes, hobbies arrojados, fala muito, gesticula e, sobretudo, observa. Habitué dos salões e banquetes da aristocracia inglesa, ele é festejado nos círculos sociais das mais altas patentes. Sua lábia causa persuasão em marqueses, barões, lordes e senhores de terras. De língua ferina, o dramaturgo esteve sempre em pauta na sociedade inglesa do século 18, seus discursos e palestras causavam comoção e frenesi nos corações daqueles que ousavam, também, escutá-lo.


Falar de O Retrato de Dorian Gray, publicado há exatos 130 na prestigiosa revista britânica Lippincott's Monthly Magazine, sem mencionar o contexto londrino da época é como contar uma história pela metade. Escritor de sucesso, Wilde já tinha peças encenadas por teatros da europa antes de sua obra prima, como Vera e A Duquesa de Pádua, além de contos, poemas e ensaios. Nobre de raízes irlandesas, a oratória foi seu poder de sedução; era colaborador da imprensa, puxava discursos em palestras sobre arte e literatura. Formado em Oxford, o escritor de estilo cáustico e sagaz embalava sátiras da vida privada da aristocracia, ainda sob influência do vitorianismo.


Seu biógrafo, Richard Ellman, afirma que, após a publicação d’O Retrato de Dorian Gray, a literatura vitoriana sofreu um baque, sendo o livro um gatilho para a ruína do conservadorismo e um aceno à modernidade. A inglaterra no século 19 vivia sob o regime de firmes condutas morais, digamos, mesmo que fosse comum o encontro de nobres nos guetos de Londres, pensões, tabernas e pubs decadentes abarrotados de coristas, garotos de programa e divertimentos noturnos. Uma parte da aristocracia levava vidas duplas. O próprio Wilde era um homem casado, pai, mas também frequentador da boemia. O que os olhos da rainha não viam à luz do dia, a noite fazia suas próprias regras.


O Retrato de Dorian Gray foi publicado simultaneamente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos pela Lippincott's, uma revista mensal que dava espaço a autores de prestígio de diversas áreas. Com sede na Filadélfia, talvez o estilo americano fosse permissivo e propício para a publicação do romance de Wilde, embora seus editores ingleses, para a primeira versão, atenuassem o conteúdo do livro. Revisado e com cortes em passagens que pudessem causar insinuações ou atentar a uma “destreza dos costumes”, a edição foi publicada, mas não poupada de duras críticas, sobretudo pelos frígidos articulistas ingleses.


Imoral, corruptivo, ultrajante, sujo, transgressor, apologético, abominável, foram essas algumas das palavras que reduziam a obra de Wilde. Com tamanha implicância dos moralistas e ortodoxos, o romance rapidamente se tornou um sucesso, chegando a edição da revista ser retirada de alguns pontos de venda da Inglaterra, e em lugares de passagem como estações ferroviárias. Um case instantâneo, Wilde, na edição de 1891, reescreveu boas páginas do, agora, livro, que fascinava tanto quanto incomodava a sociedade inglesa.


Um dos jovens que ficaram fascinados com o romance de Wilde foi Alfred Douglas, filho do Marquês de Queensberry, um garoto belo de aparência angelical. Douglas foi interpretado pelo ainda moço Jude Law, no filme de Brian Gilbert de 1997, traduzido no Brasil como Wilde: O Primeiro Homem Moderno. Na adaptação biográfica do período em que escritor estava no auge de sua carreira, a relação entre os dois (Stephen Fry interpreta o Wilde, bem mais velho do que Douglas) era um mix de devoção intelectual e orgulho. Enquanto o autor de sucesso ostentava os louros da mocidade de Douglas, adorando-o, dedicando-lhe poemas, cartas e outras homenagens, Douglas o tinha nas mãos. A relação dos dois foi um estopim para que o Marquês começasse sua investida contra os amantes.


DUPLA. FRY E LAW em Wilde (reprodução).

Não era prudente um aristocrata que vivia de aparências arranjar conflitos com outro nobre, tratando-se do Marquês de Queensberry -- aquele que aperfeiçoou o Código de Conduta do Boxe que conhecemos até hoje --, um homem rude e áspero, Wilde comprou briga com cachorro grande. Ameaçado, o escriba fez o que pode para se defender das investidas de Queensberry, chegando a expulsá-lo de sua casa em uma das últimas intimidações.


Pelo orgulho de Douglas (que estava obstinado a confrontar o pai), o escritor não recuou e foi aos tribunais. Utilizando depoimentos de habitués das tabernas e garotos de programa, a promotoria acusou Wilde também usando trechos de O Retrato de Dorian Gray contra sua honra. O escritor ficou no cárcere até 1897. O Retrato de Dorian Gray é um dos primeiros tratados sobre o amor homossexual escrito em língua inglesa, mantém-se até hoje como best-seller, ganhando centenas de edições anualmente.


O livro puxou tapete vermelho para outras notáveis histórias traduzidas em dezenas de países, atravessando séculos, como a peça sobre a morte de São João Batista, Salomé, um clássico em francês de 1892, e mais tarde A Importância de Ser Prudente e Um Marido Ideal, ambos de 1895, ano em que se instaurou o inquérito ao escritor por atentar contra a moral, sendo acusado de sodomia. O julgamento de Wilde foi um momento histórico do Direito Britânico, ao se defender das ofensivas do cerco que se fechava, o escritor proferiu um discurso ovacionado pelos presentes.


Capítulo à parte na trajetória do escritor, Wilde era devoto das relações platônicas, elucubrava em busca de um eu-lírico perfeito, enaltecia os contornos poéticos da forma, trabalhando atentamente nas minúcias espirituais e descritivas que seus personagens deveriam ter e performar. Foi um esteticista, valorizava também detalhes luxuosos em seus livros, cenários arrojados, mas sempre dialogando com o tal “Amor que não ousa dizer seu nome”, frase obtida de um trecho de seu discurso de defesa.


Apresentado por Douglas ao submundo dos excessos londrino, Wilde teve uma relação tão afetuosa quanto conturbada com o rapaz, antes do dito cárcere, o poeta se tornou prisioneiro de um ideal que ele mesmo havia cultivado, de uma devoção desenfreada. No palanque do tribunal, ele cita a relação de Davi e Jônatas, passando pela tratativa de Platão com seus discípulos, para provar o sublime de certas relações entre outros homens históricos.


Em O Retrato de Dorian Gray, o rígido pintor Basil Hallward termina sua obra prima, um retrato de um jovem atraente, Dorian Gray, amigo seu que frequenta o atelier e lá conhece Lorde Henry Wotton, conhecido de longa data do pintor, que se aproxima do jovem para apresentá-lo aos prazeres da vida. Basil, de início, não aprova o comportamento dos dois. Ele ama o jovem, não à toa confere ao seu retrato a envergadura de “obra prima”.


Interessado pelos caprichos de Lorde Henry, Dorian escanteia Basil ao passo que desenvolve uma relação ambígua com o aristocrata. Ambos se seduzem, forjando um jogo que exalta hedonismo, sensualidade, culto às aparências. Como metáfora, Wilde dá à pintura de Basil o poder de mutação. Conforme o jovem se corrompia, o retrato era alterado. Os anos passam e a beleza de Dorian continua intocável enquanto o retrato é trancafiado em um sótão, no entanto, intimamente, ele já não é mais o mesmo.


Clássico da literatura universal, o livro é uma metáfora da corrupção da alma humana, também retratando as relações sociais dos homens em plena decadência do vitorianismo. Contracultura, homoafetividade e libertação (sexual, moral, intelectual) são temas que Oscar Wilde cravou no romance, construindo passagens antológicas sobre o amor, a moralidade e a maturidade intelectual.


Um tratado sobre aparências. A ruína física e o hedonismo, bem como ícones da cultura moderna, o livro têm influências de Narciso, mas também da história da arte e da literatura chula francesa, cujas comédias rocambolescas eram apreciadas por Wilde. Em 1897, em liberdade, o escritor provou do fel do puritanismo inglês, sendo considerado tão maldito quanto o obsceno Marquês de Sade. A comparação pode soar absurda, mas o triste fim de Wilde em Paris, três anos depois, prova que, como Sade, sua obra não foi esquecida, entretanto muito mais reverberada do que a literatura do autor francês, justamente pela amor incorruptível e pela prosa elegante e profunda, típica de Wilde.


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