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Foto do escritorMatheus Lopes Quirino

Publicado há 40 anos, HQ ‘Maus’ embala gerações de leitores ao traçar prófugo geracional

\\ LIVROS


Narrativa parte da queda do protagonista, sobrevivente dos campos de Auschwitz


Por Matheus Lopes Quirino


Art Spiegelman no Salão do Livro de 2012 (imagem: Thesupermat)

Ao buscar a verossimilhança através de uma alegoria, parece até contraditório,mas foi pelo traço que Art Spiegelman, célebre cartunista judaico-americano,foi capaz de dar vida aos horrores sofridos pelo pai, Vladek, durante aascensão e queda do nazismo. Através de figuras de animais, Spiegelman publicou, no início dos anos 1980, narrativas episódicas na revista Raw, um compêndio que resultou, anos depois, na edição definitiva de Maus.


O que se originou a partir de Prisioneiro do Planeta Inferno, na edição completa, a história humana vira uma micro história da vida do Spiegelman rato. Um espelho da realidade, no caso, quando os humanos, no livro, são traçados como animais. Mas Prisioneiro do Planeta Inferno é só um encante. Nas representações animais, ratos são os judeus, enquanto seus algozes, os alemães nazistas, são representados como gatos. Por consequência, poloneses são porcos, americanos são cães, franceses são sapos e por aí vai.


O livro é um clássico, uma das joias das novelas gráficas, por que não da literatura? Que acabou vencendo um Pulitzer, prêmio máximo do jornalismo, ao abordar o desatino de um sobrevivente do Holocausto. Vladek é um personagem espirituoso. Já idoso, ele vive colecionando memórias; estas são o elo entre os dois. Durante as sessões de prosa para captar material para seu livro, Spiegelman filho se reaproxima da figura paterna que, a bem da verdade, não é tão afetuosa. Pai, um sobrevivente de guerra que soube viver com muito pouco, em zona de conflitos, precisando se reinventar para não perder a cabeça – literalmente. Filho, nascido e criado em um outro contexto, um cartunista clássico: sedentário, com péssimos hábitos higiênicos e cético.


Eles brigam o tempo todo, e esse é o tempero, o equilíbrio entre as tensões da narrativa. O livro é um relato histórico, mas também um livro de memórias, gênero que tem laureado muitos judeus da geração de Spiegelman, como Vivian Gornick e o roteirista Jean-Claude Grumberg, além de figurinhas já marcadas do cânone como Paul Auster, a exemplo. Desse leque de escritores, ao que concerne a Graphic Novel, Spiegelman é referência no gênero, tendo editado quadrinhos na The New Yorker.


O conflito geracional alavanca o livro. É uma escolha inteligente, afinal, essa pulsão e descompasso entre os dois embala a narrativa, que é árida e choca em determinados pontos. Falamos de uma carnificina, talvez a maior da contemporaneidade, ao menos no mundo ocidental, e o impacto mostrado a partir da alegoria dos animais é visceral. Spiegelman filho entra nos campos de concentração, vagões de trem contaminados por tifo, cidades destruídas, bunkers apertadíssimos. Para quem não foi vítima do Holocausto, ao menos diretamente, é surreal a verossimilhança alcançada a partir dos relatos obtidos do pai.


DETALHE. Um trecho do livro em inglês. (reprodução).

Mas tudo acaba e lá estão eles em Rego Park, no Queens. Vladek é o tipo de homem que coleciona parafusos e selos postais, economiza na graxa do sapato, requenta comida e discussões, além de roubar sabonetinhos do hotel Pine. O estereótipo de judeu obcecado por dinheiro é destrinchado. Afinal, nos tempos de bonança, Vladek vivia como um Sheik, seu apelido no livro. Separado da mulher, que foi levada a força pelos nazistas, ele peregrina atrás da família. Seus sogros, gente influente na Polônia, ricos comerciantes, são levados também. A casa cai, ele se vê obrigado a, de toda forma, se esquivar

da gestapo.


Hábil conversador, a lábia de Vladek e as negociações desvantajosas a ele mesmo são apenas paliativos para o inexorável destino dos roedores. A reinvenção daquele homem forte, a dor sofrida por ele, o trabalho braçal, no entanto, tudo isso não parece apagar a chama nutrida por ele à mulher. Anja, sua sensível companheira, uma ratinha mirrada que em algum momento acaba colaborando para a melhora do marido. Ela é sua razão de viver. E, pelo conjunto, Vladek une forças e arquiteta saídas como pode. São buracos de rato, literalmente.


“Meus quadrinhos nascem de minhas raivas”, disse o autor de Maus ao El País, em 2017. Uma forma de canalizar angústia e desconforto gerados pelas lembranças do pai, Maus não é uma obra marcada pelo ressentimento (se é que é possível em algum caso do tipo), mas pelo olhar aguçado de quem quer compreender quais caminhos levaram ao descaminho. O destempero comportamental, a quebra das instituições, a insanidade plural de um regime surreal. A caricatura é inteligente até demais. Precisa, detalhada, dosando críticas em traços que, ora outra, surpreendem pela simplicidade.


Simplicidade não significa que a história seja simples. Pelo contrário. A fluidez que a (boa) novela gráfica traz ao tom memorialístico é um trunfo para seduzir tantas gerações ao longo dos anos, nos quatro cantos do mundo. Crítico mordaz do totalitarismo, recentemente Spiegelman foi afastado de suas atribuições na Marvel por críticas ao presidente Donald Trump. Uns tomaram sua posição como ressentimento, outros encaram com lucidez. Ao que tudo indica, assim como sua obra maior, os mesmos algozes que o repreendem por suas posições, então, suavizariam como democráticos certos regimes, afagando as loucuras de seus líderes ressentidos?


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TÍTULO: MAUS

AUTOR: Art Spiegelman

EDITORA: Companhia das Letras

ANO DA EDIÇÃO: 2005

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