\\ CINEMA
Em Visages, Villages, Varda trabalha a despedida, simultaneamente com leveza e rebelião, com alegria e com reverência - o faz com aquela certeza de uma vida que nunca, de fato, abandonou o ofício de sua arte.
Por Bruno Pernambuco
Não existe uma certeza completa, uma certa definição, ou uma objetividade - ao menos que o olho possa alcançar. Qualquer relato diz muito menos sobre um acontecimento ou um objeto que sobre aquele olhar que o vê, que o presencia: está aí o jogo do cinema, esse limite com o qual qualquer diretor tem de se haver. Poucas vezes, certamente, essa contradição foi tão bem conduzida quanto sob a chancela de Agnès Varda, sob as imagens icônicas de seus filmes, sob o olhar tão preciso e cortante que atravessa a revolução trazida pela Nouvelle Vague.
Em Visages, Villages, Varda trabalha a despedida, simultaneamente com leveza e rebelião, com alegria e com reverência - o faz com aquela certeza de uma vida que nunca, de fato, abandonou o ofício de sua arte. JR é, tanto para ela como para nós, um excelente amigo para esse trajeto que tem um pé no passado e um na novidade. Por mais que aquele tipo de composição que lhe trouxe renome tenha cansado-se tanto, e tantas vezes sido copiada que num primeiro olhar, ao menos para esses olhos distantes, parece pouco mais que um clichê mastigado, o seu bom-humor é um condutor necessário a todos - filme, espectador e companheira de viagem.
A imagem ampliada parece redescobrir o seu sentido, menos saturada, menos excessiva, com mais tempo de contemplação. O road movie bem parece ser uma procura por esse outro tempo - a bem da verdade é um pouco de busca e um pouco de retomada. É sobretudo uma celebração de vida; de como as histórias que permanecem, um pouco na memória e um pouco na realidade, são as pequenas histórias que ressoam nas grandes, na transformação do cinema, nas transformações sociais - relatadas com completa delicadeza. Também é uma passagem deliciosa do passado que se entrega ao futuro- uma transição feita com a maior elegância, uma parceria que permite a observação das minúcias, das gradações das cores locais, das mudanças nos rostos que mudam com a paisagem, das menores diferenças no jogo de imitação entre JR e Godard. Uma passagem feita com sua alegria de viver, sem qualquer ponta de ressentimento.
São, sem dúvida, as histórias reveladas, e também as guardadas, por Varda que fazem valer a pena o documentário que é de uma linguagem asséptica, tão sem cheiro e sem gosto que quase chega a nausear o espectador. Contudo, de forma alguma isso é um demérito. As histórias, tão sutis, que zombam de forças tão reverenciadas, são o que há: não adianta querer competir. É, como talvez seja tudo, um causo simples, delicado, com felicidade brotando das entranhas. Ao acompanhar, com tanta ternura, uma figura tão (falsamente assumida) monumental, “a quem se deve respeito”, se humanizando, e chegando ao próprio tamanho, tem a emoção que vibra profundamente no olhar da cineasta; faz enxergar nem que seja nada mais que um vislumbre de um amor próprio, um amor feliz.
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(Assista a Visages, Villages, documentário de Agnès Varda e JR, aqui)
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