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Mesmo a dois séculos de distância dos gritos por liberdade das Gerais, ainda se pode ouvir as vozes inquietas, heroicas e covardes na obra de Meireles.
Por André Vieira
Combinação estonteante de relato poético, de alta erudição, de narrativa contemporânea ao mesmo tempo que repleta de minucias históricas, Romanceiro da Inconfidência é uma jornada instigante à Vila Rica (atual Ouro Preto) do séc. XVIII em busca não apenas por compreender as cartas, os modos, as falas, e a liberdade que rondava aquela terra grávida de riquezas, mas sim a inveja, a ambição, a impostura, a tirania e a pusilanimidade — a covardia de companheiros inconfidentes que sentenciam os seus à forca — que se fazia rondar naquela cidade-mundo, em que as mesmas discussões sócio-científicas à época debatidas nos casarões da América inglesa e nos salões franceses — pré-revolucionários — eram transpostas para aquele novo mundo do jugo de “a espada, a cruz e o louro”.
Produzido a partir de um gênero ibérico da alta Idade Média, o Romanceiro de Cecilia Meireles não se preza a recontar uma história por meio de estrutura fixa e de enredo monotemático, apoiado apenas nas figuras heroicas de inconfidentes e mártires. Decerto, o deslumbre maligno pelo “ouro” e recorrência do sangue inocente respigado nos versos podem vir a corporizar o “diabo” próprio desse estilo literário — em oposição com a história épica dos personagens —, por outro lado a própria autora, em conferência na Casa dos Contos, em Ouro Preto, em 1955, afirma que a própria temática e tônica dos romances, ou dos relatos, foi aquilo que produziram a métrica, ao contrário de exemplares mais célebres nesse cânone: “o Romanceiro foi construído tão sem normas preestabelecidas, tão à mercê de sua expressão natural que cada poema procurou a forma condizente com sua mensagem. [...] Há poemas em que a rima aflora em intervalos regulares, outros em que ela aparece, desaparece e reaparece, apenas quando sua presença é ardentemente necessária.”
Em seus 85 romances, ou relatos, o Romanceiro contempla belas descrições das paisagens e da geografia de Ouro Preto, narra episódios históricos próprio da inconfidência, abarca relatos dos populares, cartas de alforria e de amor incorrespondido, e reaviva movimentos de mercados, traições e cavalos e, quem sabe, a própria história subterrânea que vive naquelas pedras frias e bruma espessa, ainda presente na cidade. Durante a pesquisa e elaboração do livro, que durou quase quatro anos, a autora diz que se sentiu “impelida” pelo espíritos que viviam naquelas terras e que viveram aquelas histórias para transpor para o papel a drama tal qual foi vivida, mas se fosse o caso, pondera Meireles: “os documentos oficiais com seus interrogatórios e repostas, suas cartas, sentenças e defesas realizariam a obra de arte ambicionada, e os fantasmas sossegariam, satisfeitos”.
Para a escritora, em sua conferência em Ouro Preto, em 1955, é preciso entender o Romanceiro como um livro que traduz os sentimentos, fatos e simbolismos presentes naquele período histórico por meio do relato poético e não como uma obra que determina verdades e preza a explicação dos fatos e suas repercussões nos próximos movimentos no tabuleiro político-social do país: “Ainda que se soubessem todas as palavras de cada figura da Inconfidência, nem assim se poderia fazer com o seu simples registro uma composição da arte. A obra de arte não é feita de tudo — mas apenas de algumas coisas essenciais. A busca desse essencial expressivo é que constitui o trabalho do artista”.
Ainda segundo Meireles, a principal diferença entre os tipos de relatos está no perfil dos escritores: se, por um lado, um historiador poderá dizer com exatidão porque determinado fato foi narrado de tal maneira, a poeta nem sempre sabe de onde vêm suas palavras e porque foi dito daquela maneira: “A busca desse essencial expressivo é que constitui o trabalho do artista. Ele poderá dizer a mesma verdade do historiador, porém de outra maneira. Seus caminhos são outros, para atingir a comunicação. Há um problema de palavras. Um problema de ritmos. Um problema de Composição. Grande parte de tudo se realiza, decerto, sem inteira consciência do artista. É a decorrência natural da sua constituição, da sua personalidade.
“Mas se a obra de Meirelles não pode ser considerada nem como exemplo de romanceiro ibérico, nem como fiel retrato histórico daquele momento, por que devo me aventurar nessa peripécia da redondilha maior?”, neste ponto, deve estar se perguntando o leitor dividido entre ler a maior obra da escritora e se decepcionar com o que encontrará. Dúvida bem fundamentada, eu diria, mas pouco expressiva frente ao trabalho magistral que a autora se colocou à prova, colocando o olhar e os valores da época, em terreno comum para que nós, 231 anos depois, possamos entender e refletir sobre os alicerces que fundaram o primeiro império brasileiro e, futuramente, as primeiras repúblicas onde eclodiriam a chama da democracia.
Assim, o maior trunfo da prosa poética de Cecília Meireles não é apenas traduzir aqueles símbolos, sentimentos e fervores em relatos e romances para o leitor contemporâneo, mas sim, por meio do olhar cálido de uma experiente poeta e escritora dar voz aos caídos e esquecidos, humanizando-os em seus cotidianos, valores e vontades onde as paixões sejam valorizadas, mas, mesmo assim não descampem para o folhetim da esquina ou para as emoções do palco sem plateia. De leitura agradável, em versos compactos e muito bem tecidos, o Romanceiro se mantém, mais de seis décadas depois de sua publicação, como um livro fundamental tanto para os iniciados na prosa poética e na história das Gerais, quanto para os grandes conhecedores de Meireles e de poesia, que, certamente, terão uma feliz surpresa ao abrir suas páginas.
Romance LXXXIV ou Dos Cavalos da Inconfidência
"Eles eram muitos cavalos, ao longo dessas grandes serras, de crinas abertas ao vento, a galope entre águas e pedras. Eles eram muitos cavalos, donos dos ares e das ervas, com tranqüilos olhos macios, habituados às densas névoas, aos verdes, prados ondulosos, às encostas de árduas arestas; à cor das auroras nas nuvens, ao tempo de ipês e quaresmas. Eles eram muitos cavalos nas margens desses grandes rios por onde os escravos cantavam músicas cheias de suspiros. Eles eram muitos cavalos e guardavam no fino ouvido o som das catas e dos cantos, a voz de amigos e inimigos; - calados, ao peso da sela, picados de insetos e espinhos, desabafando o seu cansaço em crepusculares relinchos. Eles eram muitos cavalos, - rijos, destemidos, velozes - entre Mariana e Serro Frio, Vila Rica e Rio das Mortes. Eles eram muitos cavalos, transportando no seu galope coronéis, magistrados, poetas, furriéis, alferes, sacerdotes. E ouviam segredos e intrigas, e sonetos e liras e odes: testemunhas sem depoimento, diante de equívocos enormes."
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