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Os Espólios do Perdedor

\\ CINEMA

A história contada em preto e branco. A edição sóbria, a composição precisa, lúcida e glacial, onde uma luz outonal vem e morre

Por Bruno Pernambuco

Pôster de Guerra Fria, de Pawel Pawlikowski.

******A crítica abaixo contém spoilers********


A história contada em preto e branco. A edição sóbria, a composição precisa, lúcida e glacial, onde uma luz outonal vem e morre, e ainda seu brilho permanece até o último momento. É nas incongruências, no jogo de espera e na persistência da memória que Guerra Fria elabora sua poesia quase de Wajda, dando à história sua dimensão universal, de qualquer dia, qualquer país e quaisquer pessoas sob o mesmo sentimento, simultaneamente que se conta a narrativa de um tempo muito particular.


Até pela forma com que joga com o espectador, entre fazer acostumar-se à história sendo contada e seguir os acontecimentos da vida do tornado casal — e a permanência constante do nojo e a repulsa criados no início da relação dos protagonistas —, Guerra Fria é uma obra que constantemente puxa o tapete de quem tenta falar a seu respeito, ou defini-la de alguma forma. Afinal, aqui se mostra uma história forjada na lava, no calor dos sentimentos e na pulsação efetiva de um passado; assim, é também uma narrativa que entra profundamente nesse enlouquecimento do poder, que o toma e que tão intensamente reflete cada uma de suas ramificações.


O músico interpretado por Tomasz Kost compõe um personagem absolutamente desprezível, odioso e vazio. É um Iago - para usar a expressão de Harold Bloom, é também uma guerra permanente- e é o contraponto à toda a espera, à toda precisão e definição dos movimentos que acontecem ao seu redor. A partir de onde vejo, de quem sou, de minhas experiências, é como se eu visse uma toccata atravessar-lhe, e nele enxergasse um negativo de mim, aquela parte que deixou de viver, que abdicou de ser humano e tornou-se completamente lisura. Estou diante desse reflexo, e com isso vou, também, me haver com a persuasão desse homem oco. Ao mesmo tempo, quem assiste o filme vai se fechando dentro desse caminho retalhado do personagem, e assim, como é possível pintar qualquer liberdade, o passaporte para qualquer sonho, no poderoso diretor da orquestra, ou no músico bem-sucedido do outro lado da repressão, se vai afundando nas esperas dessa promessa ao mesmo tempo que o coração se lacera, retorce, vomita e quer implorar à menina que seja capaz de enxergar a realidade - ou tão simplesmente olhar nos olhos da grande cantora e se presumir capaz de com isso entender quem é que vive ali dentro.

Afinal, o ato dos não amantes é a única conclusão que fecha a história tão interligada de poder e de dependência do outro. A imagem do banco vazio é tudo que resta, refletindo não só a consumação da tragédia pessoal não enxergamos mais que o avesso do suicídio, que é por si só o avesso do nascimento recém-anunciado - mas também a encruzilhada histórica - só resta a imagem um tempo vazio, indefinido, onde restaram apenas as ruínas daquelas certezas em que era possível se segurar. Nessa paródia dos grandes finais, trágicos, das narrativas românticas, o filme lembra a pequeneza de tudo aquilo que foi contado, e do que é, realmente, cada ato daquelas duas pessoas. A dedicatória que conclui a ironia viva que atravessava toda a história desse par é como uma minúscula adaga que desce até o coração transformando todo o percurso em gelo, e golpeando o sentimento já minguado, aflito e mudo.


***

[Assista aqui a Guerra Fria. (O filme contém cenas potencialmente perturbadoras, que podem causar desconforto à audiência- abuso de menores)]


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