\\ ARTE
Com João Gilberto o estilo lírico empostado deixou de ser popular e aquela voz austera de tenores, barítonos e contraltos, perderia pouco a pouco lugar no imaginário do brasileiro
por João Tognonato, colaboração para Frentes Versos
MEMÓRIA. O esquivo João Gilberto, durante uma de suas apresentações de voz e violão. (reprodução)
Hoje faz um ano que morreu João Gilberto – na moral, que tristeza. Confesso que não sou sentimental, não choro vendo filmes, lendo livros, nem nada dessas coisas, mas é que João Gilberto era diferente. Caramba, ele tinha que morrer assim? Sozinho, em seu apartamento, no meio de uma disputa de família, visivelmente debilitado, jogado as traças, vestindo pijamas e fumando maconha – não, ele não merecia.
Armado apenas de um banquinho e de um violão, o Baiano de Juazeiro deixou sua marca na história na MPB levando para dentro do ouvido dos brasileiros diversidades rítmicas, harmonias inusitadas e uma afinação perfeita, fazendo com que após a década de 1950, não houvesse um único músico que continuasse imitando os artistas da era do rádio. A revolução foi tamanha que o músico não só influenciou toda a geração seguinte de tropicalistas, como também os cantores que o precederam; obrigando-os a rever seu estilo para que acompanhassem a carroça da MPB, agora conduzida por essa excêntrica figura. Com João Gilberto o estilo lírico empostado deixou de ser popular e aquela voz austera de tenores, barítonos e contraltos, perderia pouco a pouco lugar no imaginário do brasileiro.
Ficou também conhecido pelos hábitos extravagantes: acordava às cinco da tarde, ia almoçar quase a meia noite e jantava após o sol já ter raiado, dentro de um apartamento onde reinava o mais absoluto caos – um antro sujo, cheio de lixo, repleto de infiltrações e poeira por todos os lados, no qual nenhuma faxineira, técnico, encanador, pedreiro, eletricista etc., podia entrar. Essa fobia social gerou inúmeras situações curiosas que foram afetar até seus amigos mais próximos. Certa vez Elba Ramalho lhe chamou pelo telefone, na época em que vivia no apart hotel, e pediu para que ele a recebesse. João Gilberto foi direto: “Você tem um baralho?”, perguntou. Elba disse que não, mas que iria em busca de um. Depois de procurar e finalmente encontrar, voltou ao hotel recebendo do cantor a ordem para que o passasse debaixo da porta – e que fosse embora – pois ele não pretendia recebe-la naquele dia.
Por atitudes como essa – e pelo trato que dava ao público, e aos técnicos de som – ficou injustamente caracterizado por ser uma figura arrogante e até humanamente insensível. Contudo a primazia que exigia em relação à qualidade do som nunca se mostrou uma mero capricho retórico, já que o artista sempre entregava para a plateia aquilo que prometera. Que culpa ele tinha, se havia se acostumado com a perfeita acústica daquele banheiro onde costumava estudar – livre dos cabos, conexões, hubs, medusas e jacks – onde ouvia o som da maneira exata como o agradava?
Nos últimos meses de vida João Gilberto teve a tranquilidade afetada por uma trama judicial daquelas encontradas apenas nas melhores séries de advogado. Em 2003 deixou um testamento, no qual estava configurada a maneira com que faria a repartição dos bens entre os filhos, Bebel Gilberto e João Marcelo, e sua companheira Maria do Céu. (50% iriam para os familiares – como consta na lei – e os outros 50% seriam fracionados, e distribuídos à cada uma das partes.) O acordo desagradaria sua prole, e os dois irmão não acharam justo que Maria do Céu tivesse direito à uma parcela tão grande da herança, pois era Bebel quem bancava a vida dos amantes no apartamento de 140 metros quadrados na Zona sul do Rio de Janeiro, pagando o aluguel, e dando dois mil reais para outras despesas, como restaurantes, farmácias e afins
A situação piorou a partir do momento em que Bebel Gilberto passou a exigir de Maria do Céu as notas fiscais dos serviços, o que desencadeou uma série de ameaças de ambos os lados, e que chegariam ao limite quando João Marcelo, agindo contra a própria irmã processou-a numa outra questão envolvendo a interdição judicial dos bens, à qual a filha tinha submetido o pai. No meio dessa confusão, João Gilberto Prado Pereira Oliveira, teve ainda que presenciar de perto o dia em que Miúcha precisou ser internada com urgência enquanto lutava contra um câncer, vindo a falecer pouco tempo depois, o que o deixou psicologicamente muito abalado... se já era incapaz de tocar qualquer música enquanto ouvisse o incessante “Ommm” gerado pelas microfonias e os insuportáveis cochichos da plateia, como poderia encontra a paz num ambiente desses?
Ah, João Gilberto – hoje faz um ano que morreu. O que fizeram de você? Um débil senhor preso aos dias de criança. Você que cantou para todo mundo e enfeitiçou as areias de Copacabana com sua atmosfera enevoada, cirúrgica e sincera. Fosse na sala de espera dos aeroportos, no elevadores, no rádio do carro, nos museus, nas salas de concerto, nas propagandas de seguro, nos banheiros de shoppings centers, nos supermercados, nas padarias, nas escolas de música, nos motéis ou drive-ins sempre despertou aquele sublime interesse que emana dos artistas imortalizadas por uma geração. Quando Bebel entrou no quarto e disse ter te encontrado esquálido, fraco, confuso e balbuciante não poderia ser diferente – pois você é o Brasil, e cá estamos nós. Basta olhar pela janela.
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(Os textos de colaboração não expressam necessariamente a opinião da Frentes Versos)
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