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Em novo romance, Domenico Starnone desvenda o segredo da solidão de nossas palavras.
Por André Vieira
Qual é o valor de uma promessa? Para alguns é o tempo que ela vale para ser quebrada. Já para outros, são anos em que ela se mantém inquebrável, apesar de sermos pessoas diferentes daquelas que firmaram o primeiro contrato. A partir do momento em que dizemos ao outro “eu prometo”, criamos um laço com aquela pessoa muito mais apertado do que um simples aperto de mãos descontraído: ao pronunciar os primeiros votos de sigilo comprometemos, sobretudo a nós mesmos, a levar ao túmulo aquela informação preciosa ou aquela mentirinha esguia a custo da própria vida — ou que escape do peito no primeiro sorriso.
Em Segredos, lançamento do escritor napolitano Domenico Starnone pela editora Todavia, esse contrato curioso entre mentirosos de plantão e orgulhosos assíduos se firma de maneira cirúrgica e caprichosa. Contado em sua maior parte através da emblemática de Pietro Vella, jovem professor de latim de uma escola de ensino médio no subúrbio romano, o livro investiga a força motriz das palavras para moldar, reformular ou, em última instância, sustar as relações humanas mais condecorativas ou íntimas. Seja na promoção de um artigozinho sobre a situação do ensino público italiano, seja na entonação discursos de acalorados promovendo livros, são elas as primeiras e as últimas responsáveis pela apaixonada razão de conhecer o mundo e instigar nossas curiosidades, principalmente se elas nos permitem mudar de perspectiva sobre nós mesmos e daqueles a nosso redor.
Contudo, não é sobre as coisas que falamos a principal temática de Segredos. De cara, Starnone abre seu romance retratando a força do amor no cotidiano de Pietro e de como todos os elementos de sua vida giram ao redor, sobretudo as próprias palavras: “De fato, o amor tal como o conheci é uma lava de vida bruta que queima a vida fina, uma erupção que anula a compreensão e a piedade, a razão e as razões, a geografia e a história, a saúde e a doença, a riqueza e a pobreza, a exceção e a regra”.
É a partir dessa força motriz do relacionamento que desnudamos a relação corpo-alma presente em todo livro. Por meio dela, e do confidenciar mais profundo de segredos ao outro, ou caso de Segredos, de Pietro a Teresa, se coloca em movimento a tensão de narrativa: "Se ele sabe tudo sobre mim, o que de pior ela/ele poderia fazer para me prejudicar?"
Mas Segredos apresenta mais do que o delicado equilíbrio do silêncio íntimo. A obra abarca aquilo que guardamos sobre os outros e sobre nós mesmos: como podemos desejar uma vida despretensiosa apoiada apenas sobre aparências, enquanto nós — e nossos mais próximos — carregamos dispositivo-bombas que podem “arrasar quarteirões”, em um simples transmutar de ânimos?. A síntese dessa ideia se encontra na própria construção do personagem principal. Após relativo sucesso com um artigo publicado em uma revista sem muito prestígio, Pietro se vê dividido entre provar a si mesmo que é digno de viver uma vida intelectualizada povoada por ideias, eventos, paqueiras e coquetéis estonteantes, ao mesmo tempo que assume as responsabilidades paternas e encena a vida matrimonial.
É a partir dessa cisão clássica entre realidade-expectativa que Pietro se vê encurralado entre seus desejos mais íntimos e o contrapeso de seus laços familiares, se fazendo questionar sobre própria legitimidade de seus pensamentos adúlteros e desejos carnais, além de viver receoso com as represálias que receberia da família e arruinariam sua reputação no meio acadêmico — afinal, quem confiaria em um homem que fala da ação transformada da educação, mas mal tem tempo à própria família?
Não à toa que as figuras femininas têm destaque na narrativa. Colegas, ex-alunas, esposa e filha são as vozes que dão sustentação ao arcabouço “homem” enraizado no imaginário coletivo há tempos. Se não fossem elas que cuidam da casa, da família, do emocional e, em última instância da própria memória desses “grandes homens” cujo brio ilumina nossa vidas, nada disso seria possível, ou reparafraseando os versos de Brecht presentes no livro: “Uma vitória a cada página./Quem cozinhou o jantar da vitória?”.
Mas os homens de Starnone são personificados pelo medo. Seja pela masculinidade fraca, seja pela agressividade latente, os protagonistas masculinos tanto em Segredos tanto em Laços vivem em constante pavor em relação aos seus pares femininos, evitando a todo custo entrar em discussões sobre os erros da juventude. Em Segredos, no entanto, o poder de barganha torna-se potencialmente maior não apenas porque Teresa, sombra das ambições de Pietro, tem os meios de o fazer recuar vinte casas no tabuleiro de pretensões acadêmicas, mas porque, Pietro também possui em mãos e na memória segredos com o potencial arrasa-quarteirão para detonar a carreia astronômica de sua ex no MIT.
Divido em três partes desiguais que abrangem diferentes momentos da vida de Pietro, a obra consegue descortinar os imperativos que movem ou paralisam homens, mulheres, filhos, filhas, amigos e amigas mediante algum acordo ético — mas nem sempre evidente — firmado entre as partes. Por outro lado, Segredos não se limita a apenas entender as razões morais pelas quais nos apresentamos ou nos resguardamos diante, mas tenta entender como essas restrições e essas liberdades encarceradas, sob o pretexto sigiloso, também são importantes para formar nosso carácter e influenciar em nossas escolhas. Em outras palavras, coloca-se em xeque que é possível termos controle absoluto sobre nossos caminhos e descaminhos, assim como é impossível dispor de autoridade total sobre a forma como somos percebidos pelos outros a nosso redor: finalmente, a vida é um estado permanente de instabilidade e imperfeição mediante o olhar do outro e nosso próprio.
Numa edição bem-cuidada, embora leitor apaixonado por Starnone sinta falta de uma introdução que dê mais ênfase às temáticas que encontrará do livro — e com trabalho cristalino de tradução Maurício Santana Dias, amigo pessoal do autor, o livro se apresenta como mais um trabalho precioso, de prosa elegante e linguagem fluente no rol de grandes obras do autor napolitano.
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TÍTULO: Segredos
AUTOR: Domenico Starnone
EDITORA: Todavia
ANO: 2020
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