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O retrato de uma jovem em chamas, de Céline Sciamma, o desejo que queima

\\ CINEMA


O olhar feminino sobre o amor e a sexualidade veladas e polidas no século XVIII


Por Isabella Marzolla, colaboração para Frentes Versos

Portrait de la jeune fille en feu, de Céline Sciamma (2019)

Com estreia prevista para o começo de janeiro nos cinemas brasileiros, o filme francês Portrait de la jeune fille en feu (título original) da diretora Céline Sciamma saiu premiado duas vezes do Cannes deste ano, na categoria Queer e na de roteiro original, além de sair de lá com indicação de melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro.

Com 121 minutos de cenários nublados e permeados por uma sensação pretensiosa de que algo está prestes a explodir em uma pequena ilha no Norte da França, Marianne (Noémie Merlant) é contratada pela Condessa, para pintar Héloïse (Adèle Haenel), sua filha recém-saída de um convento e prestes a se casar contra as suas vontades — como maioria dos casamentos da época, em 1770. Héloïse nunca tinha vivido e visto o mundo como gostaria; apesar de ter deixado o convento, ainda se sentia aprisionada.


Se o início da libertação feminina só seu deu a partir das sufragistas no final do século XIX, em 1870, no meio de um arquipélago de pequenas ilhas isoladas, os desejos sexuais da mulher eram (des)considaredos inexistentes.

Héloïse se mostra incansavelmente revoltada com o casamento, e se recusa a ser retratada em um quadro, – que seria mandado para seu futuro noivo italiano, na esperança de que apesar da distância, sua beleza poderia fazer “valer a pena” o trajeto – dispensando todos os pintores que sua mãe, a Condessa, contratava. Até aparecer Marianne.

Em meio a muitas tentativas de conseguir um retrato de Héloïse, a Condessa decide fingir que Marianne havia sido contratada como dama de companhia e não pintora. Dessa maneira, Marianne passaria todo o tempo com Héloïse, e durante o dia – com a claridade anuviada da Ilha – observaria minuciosamente todos os detalhes da feição e expressão da jovem, guardaria-os na memória para só a noite – sob à iluminação de labaredas de velas – poder pintar Héloïse.

Durante o dia, a luz do sol ilumina os cantos, rachaduras e decorações antigas de um casarão decadente e desgastado pelas brisas salgadas do Canal da Mancha. O casarão vai se decompondo ao longo da história, talvez como as intenções reprimidas das personagens.

Portrait de la jeune fille en feu, de Céline Sciamma (2019)


Marianne pinta e da aulas de artes. Nas aulas a diretora, Céline Sciamma, exalta nos diálogos a importância do olhar sobre o corpo feminino, chamando atenção ao detalhe das silhuetas, à delicadeza dos rostos, à maneira como se olham. O corpo da mulher é celebrado na longa, que além desse, tem outros aspectos feministas, – se podemos caracterizá-los assim também – como o fato do elenco ser praticamente inteiro composto por mulheres, dirigido por uma mulher, e retratar um romance entre duas mulheres do século XVIII.

Héloïse é controlada pela mãe, julgada pelas criadas e limitada geograficamente pelo mar que a cerca. Esses fatores transmitem uma sensação de angústia, melancolia, como se a personagem quisesse se libertar, “voar para longe” do meio em que vive, ser a dona de seu próprio destino, mas tem constantemente suas esperanças frustradas.


– “O que você sabe sobre meu casamento?” – “Nada”. – “Isso é o que eu sei também”.

As caminhadas pela areia da praia, as corridas que só param na beira dos penhascos e o pensamento aprisionador de que Héloïse se casará com alguém que nunca viu são aspectos sufocantes para quem assiste o longa.

Héloïse precisa se libertar, e desde a chegada de Marianne, uma chama queima em seu peito. Esse ardor que aos poucos vai aumentando e queimando. O Retrato de Uma Jovem em Chamas, é a representação do desejo arrebatador e proibido que as personagens nutrem uma pela outra, que traz fé à possibilidade da emancipação daquela vida pré-destinada das damas de XVIII.

A censura dos desejos da pintora é mostrada em seus quadros inacabados e em borrões agressivos; seu autocontrole começa a ceder e dar espaço ao antes coibido por ela.


-“Sempre tive vontade de fazer isso.” -“Morrer?” -“Não, correr.” – Héloïse também nunca tinha ouvido uma orquestra, algo relativamente comum naquela época em sua classe social.

Sem cenas explícitas entre as amantes que não conseguiam se amar, a diretora preferenciou cenas de maior proximidade da câmera aos rostos das atrizes – se ouve a respiração, se sente a palpitação, a tensão entre os corpos – que condiz com a realidade histórico-social do romance.

O fardo do casamento arranjado, o fardo da “heteronormatividade” , a falta de liberdade em todos os aspectos da vida dessas mulheres é angustiante.

Produzir um filme com elenco apenas de atrizes, por uma diretora mulher, sobre o olhar de uma mulher se apaixonando por outra, com uma ambientação da França de 1770 pode ser desafiador, no sentido de que se mal executado possa virar um clichê. Mas nesse caso, o fogo que queimou Héloïse e Marianne também queima a nós, espectadores.


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