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Em seu romance de estréia, Garth Greenwell narra um relacionamento turbulento entre um professor e um jovem
Dwight Garner*, The New York Times
“Só existem umas duas ou três histórias humanas”, escreveu a autora galesa Willa Cather, “e elas vão se repetindo, tão intensamente como se nunca antes tivessem ocorrido”.
Uma dessas histórias perpétuas é o desencontro do tesão desafortunado ou aquele que surge inexplicavelmente, ou o que aparece nos momentos mais inoportunos. “O Que te Pertence”, esse livro incandescente, primeiro romance de Garth Greenwell, faz da velha história uma nova, e doída.
Este curto romance narra a história de dois homens que se conhecem no banheiro do Palácio Nacional da Cultura, em Sófia. Não é que eles precisem, de fato, aliviar a bexiga; o lugar é conhecido por encontros desse tipo.
Um dos homens, o narrador, que não é nomeado, é um jovem americano, professor na Bulgária. O outro é Mitko, um prostituto a quem o professor paga por um programa. Começa assim um relacionamento difícil, tão complicado que, em seus entranhamentos, permite ao talentoso senhor Greenwell explorar as questões mais amplas quanto à lealdade e à compaixão humanas.
Mitko não é nenhuma espécie de prostituto intelectual ou sábio, à maneira dos personagens de Dostoiévski. Ele é um folgado, que raramente toma banho, frequentemente rouba, tem feridas de herpes, brilhando em torno da sua boca, e que repetidamente tem o rosto desfigurado por conta de brigas. Ainda assim ele é, a seu jeito, bonito. Alto e de ombros largos, ele desperta os instintos animais do narrador. Ele faz o narrador imaginar “as luzes de uma casa que freneticamente apagam e acendem”.
Um dos temas fundamentais de “O Que te Pertence” é a natureza humilhante do desejo. O professor é um homem cuidadoso e intelectual, que, ainda assim, sente que o desejo sexual caminha a seu lado “feito um cão inquieto”. Ele reflete sobre “o quão patético é o desejo fora da sua pequena ilusão quente; o quão ridículo ele se torna no momento no momento em que não é mais bem-vindo, mesmo que a sua vinda tenha sido aproveitada.”
Depois, sozinho, o professor se sente envergonhado, e lê Cavafy e Whitman. Intelectualmente, ele deseja “abrilhantar o que se tornava mais e mais sórdido” em seus encontros com Mitko. O professor é um homem inteligente. Quando ele vai a um departamento de doenças venéreas ser testado, ele nota, a respeito do termo “venerologia”: “Pelas raízes latinas, devia um ser o estudo do amor”.
Não vou revelar, aqui, qual o destino último do relacionamento entre o professor e Mitko. Mas não demora até que o prostituto venha cheio de pedidos ao seu amante, e não só por dinheiro. Sua vida começa a sair de controle. Ele vai para a cadeia, e sua saúde deteriora. Ele se torna, do ponto de vista do professor, ao mesmo tempo repulsivo e amado.
Greenwell escreve frases longas, atadas por ponto-e-vírgulas, que avançam como vinhas buscando novos espaços. Sua voz combina abundância e maestria da técnica. Ele tem um conhecimento natural de como, com as palavras, conjurar um feitiço.
O autor nasceu em Louisville, no Kentucky, e é formado em Harvard e na oficina de escrita da Universidade de Iowa. “O Que te Pertence” começou como uma novela, “Mitko”, publicada em 2010 pela editora da Universidade de Miami. As três primeiras seções de “O Que te Pertence” são uma versão revisada e reduzida da novela.
As seções seguintes, inéditas, contam sobre a infância do narrador nos Estados Unidos, e sobre seu relacionamento distante com os pais. De início, não gostei quando o livro aborda a difícil saída do armário do narrador, durante a adolescência. Me agradara o relativo mistério da primeira seção. Eu não queria um Freud de botequim apertando demais as cordas do violão.
No fim das contas, eu tinha com o que me preocupar, pelo menos não muito. As últimas seções de “O Que te Pertence” podem não ter o mesmo suspense soturno da longa abertura, mas Greenwell é, ainda, um autor que abre e que explora fendas, invés de contruir pontes bambas entre os lugares. Ele é um observador das interações humanas. Ele sublinha como as expressões de amor são quase sempre, ao menos em parte, performance. “Há sempre algo de teatral nos nossos abraços, eu acho”, escreve ele, “em como nós medimos as nossas respostas frente àquelas que percebemos ou que imaginamos; sempre nós desejamos ou demais, ou não o suficiente, e compensamos de acordo.”
O professor e Mitko dançam uma espécie complicada de tango. Em certo momento, ouvimos o narrador pensar “não me ocorreu querer mais daquele momento, testá-lo e ver o quanto ele se estica.”. Mais comum é que realmente ocorra ao autor testar os acontecimentos, e enfrentar os limites convencionais.
A capa de “O Que te Pertence” é a foto de um conjunto habitacional triste, brutalista, do leste europeu. O cenário é muito importante para esse romance, que tem lugar no tempo presente. O vazio da Bulgária é uma paleta neutra, sobre a qual a agitação sexual e intelectual que colore toda a obra reluz. O boom econômico do país não deu em nada. Aqueles que podiam ir embora o fizeram. Praticamente não existe emprego honesto sobrando para alguém como Mitko.
Em uma das cenas mais tocantes do livro, Mitko mostra ao professor o seu perfil em uma rede social muito usada por homens gays. Sua foto é de dois anos antes. “Eu fiquei chocado pela diferença dos rostos: o homem na imagem e o homem ao meu lado”, diz o professor. “Não só o seu dente ainda estava inteiro, mas a cabeça ainda estava cheia de cabelo, castanho, num corte bonito.” “Não tinha nada de violento ou ameaçador nele, ele parecia um bom garoto, alguém que poderia esta na minha aula, na renomada universidade em que eu leciono.”
Ele olha para a tela do computador, depois para Mitko, “tentando descobrir qual é o rosto verdadeiro, e como ele foi perdido, ou foi ganhando.”. Greenwell escreveu um livro sobre os rostos que nós apresentamos para o mundo, e ele não tem nada de consolador a dizer.
*Tradução de Bruno Pernambuco
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TÍTULO: O Que te Pertence
AUTOR: Garth Greenwell
EDITORA: Todavia
ANO: 2019
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