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O cinema de distopia

\\ CINEMA

A distopia assim, nunca deixa de ser aquela imagem que põe quem a vê continuamente em movimento- como uma vez Eduardo Galeano definiu que seria seu oposto, a utopia.

Por Bruno Pernambuco

Pôster de "Fahrenheit 451" (1966), de François Truffaut.

A distopia fez nascer muitas das imagens mais marcantes da história do cinema. Das torturas às quais Alex é submetido em Laranja Mecânica até o suspense futurista de Blade Runner, as obras cinematográficas que se inspiraram na literatura, ou em outras fontes, foram fundamentais para estabelecer nosso imaginário corrente de um futuro distópico. É interessante notar como ao longo dos tempos, e com diferentes movimentos, a ameaça que esse futuro guardava foi se alterando, revelando elementos que cada vez mais diziam respeito a momentos históricos específicos, e a novas aflições que povoavam um outro lado das mudanças históricas.


É possível enxergar um lançamento do gênero distópico no cinema com as obras de Fritz Lang- Doutor Mabuse, de 1922, e Metropólis, de 1927. Se o primeiro imagina uma dissolução social, um olhar distópico para a crise vivida pela Alemanha durante a república de Weimar, é com Metrópolis que pela primeira vez se estabelecem muitos dos motes que virão a se repetir no conjunto entendido como “cinema distópico”- a construção de um mundo futuro, que reflete uma imaginação distorcida de elementos que existem no presente, revelando possibilidades assustadoras e hostis (aquilo que está na origem do termo distopia), e um avanço do desenvolvimento tecnológico que altera aspectos fundamentais tanto do social quanto das individualidades, trazendo a inversão das normas que estão estabelecidas para a vida presente.


(É necessário aqui fazer um parênteses, para dizer que as primeiras obras de sucesso que começam a formar um campo da distopia no cinema popular são as histórias de invasão alienígena. A adaptação de A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, em 1953, e o lançamento de O Dia em que a Terra Parou, inspirado no conto Farewell to the Master, de Harry Bates, em 1951, estabelecem desde cedo uma relação íntima com o gênero da ficção científica, que mais tarde viria a ser retomada. De enorme sucesso comercial, esses filmes estabelecem primeiras imagens de uma ameaça à vida e à ordem social, que se internalizam profundamente no grande público. Assim, já durante a época de ouro dos estúdios hollywodianos, os filmes distópicos estão intrinsecamente ligados ao sucesso do cinema enquanto arte de massa, e à cultura norte-americana durante a guerra fria, que encontrava na tela um espaço privilegiado de projeção de suas angústias. Nesse momento, então, o pânico da guerra nuclear e da corrida pelo desenvolvimento tecnológico está representado nesses inimigos estrangeiros, alienígenas, numa espécie de poder superior capaz de alterar o funcionamento da vida até então ordenada.)


O gênero distópico moderno tem sua forma consolidada nos anos 60, com a chegada de novas influências e vertentes críticas ao cinema. Uma de suas principais vertentes turbilhão social e a mudanças fecundas trazidas por movimentos de contracultura, o cinema passa a se voltar especialmente para reflexões sobre o autoritarismo, e sobre a perseguição às liberdades. A adaptação de clássicos da literatura continua a ser uma das principais inspirações para o novo gênero, e sob as lentes de François Truffaut, Fahrenheit 451 se transforma em um dos maiores símbolos ideológicos e estéticos da nouvelle vague. Seu lançamento em 1966 marcou um novo imaginário quanto ao futuro e quanto às representações do autoritarismo. As imagens de Truffaut, suas cores quentes contrastando com o preto sério e sisudo dos uniformes oficiais, influenciaram toda uma linhagem de filmes que se propôs a revisitar temas caros à obra original de Ray Bradbury. Sua influência pode ser vista em obras como 1984, de Michael Redford, já nos anos 80. Essa nova relação dos projetos distópicos com outros gêneros de filme e com outras formas de filmar e estruturar histórias, especialmente vindas da crítica europeia- aproximando-lhes definitivamente do cinema de arte- vai inspirar obras como Laranja Mecânica, em 1974.


Ao mesmo tempo que os primeiros filmes distópicos começavam a formar o imaginário do gênero no cinema, a ficção científica também começava a consolidar-se enquanto gênero cinematográfico, igualmente partindo muitas vezes da adaptação de romances e de outras inspirações literárias. É a partir dos anos 80, quando a computadorização dos espaços pessoais e de trabalho abarca novos níveis, e começa a se mostrar consequências colapso dos governos neoliberais, que essas duas vertentes, já muitas vezes em diálogo, devido ao mote da ficção futurista, se encontram definitivamente, em um novo imaginário, que presume agora a falência dessas sistemas avançados, e suas desastrosas para a sociedade que os criou. O lançamento de Blade Runner, em 1982, foi um marco dessa nova geração de filmes, e trouxe uma revolução estética à representação do futuro distópico. Com tons escuros, e com a construção meticulosa de uma atmosfera de suspense, a fotografia noir do filme de Ridley Scott evocava um nova direção do que poderia se tornar o mundo dominado por forças além do controle dos humanos. O suspense, e a atmosfera sombria atravessada pelas luzes gritantes dos aparatos mecânicos, se tornam marcas do cinema de época, que trazem uma materialidade nova às sociedades distópicas imaginadas em trabalhos de ficção científica, como Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Phillip K. Dick, que serviu como ponto de partida do filme. Na mesma época, entretanto começa a se desenvolver outra imagem de um futuro distópico- perfeitamente ilustrada em Mad Max, de 1979, onde a terra arrasada futurística é diretamente justificada por um esgotamento dos recursos naturais. O futuro apocalíptico, ao mesmo tempo em que se apresenta, enquanto tema cinematográfico, como uma grande vereda, uma estepe que muitas vezes serve de palco à história de um protagonista, representa um colapso social, o negativo daquilo que é desenvolvido na imaginação das sociedades ultratecnológicas. Em vez de uma ordem social autoritária e extremamente rigorosa, castradora e que se volta contra a vida, ocorre o encontro com a anarquia caótica, em que a sobrevivência está desestabilizada, submetida a uma contínua luta por sua manutenção. O mote da terra arrasada e do pós-apocalíptico- que, se pode dizer, tem suas primeiras sementes colocadas na década de 60, com O Planeta dos Macacos- se repete ao longo da história do cinema, e constantemente se renova conforme novos momentos de crise e novas desestabilizações da ordem social ocorrem.


Também é muito interessante olhar para as formas como o gênero da distopia se apresenta no cinema de hoje. Muitas das imagens distópicas correntes vieram de fontes da literatura juvenil, em que a literatura de distopia encontrou-se com um gênero consolidado desde a publicação de sagas como Harry Potter para falar a história de protagonistas jovens sob sob essas condições autoritárias, muitas vezes determinadas por elementos mágicos ou fantasiosos. É assim que sagas como Jogos Vorazes se tornaram franquias estabelecidas, e alguns dos filmes de maiores bilheterias de anos recentes, estabelecendo um novo folclore para uma distopia presente. Entretanto, recentemente vemos uma retomada daquela hostilidade original da distopia, e isso está colocado na violência de filmes como Parasita e Bacurau- na subversão de aspectos próximos da realidade ou na reexploração de objetos clássicos do cinema. Esses dois filmes de finais opostos, um no qual a opressão se perpetua, e um que apresenta uma conclusão redentora, apontam um olhar novo para o caminho antigo das distopias que fantasiavam o colapso da unidade social e as ameaças percebidas na vida corrente. A distopia assim, nunca deixa de ser aquela imagem que põe quem a vê continuamente em movimento- como uma vez Eduardo Galeano definiu que seria seu oposto, a utopia. A distopia no cinema ainda é um espaço necessário, para dar vazão às aflições que muitas vezes estão reprimidas nos efeitos cotidianos da vida social, e simultaneamente criativo, pois elabora esses conteúdos e os apresenta de forma nova ao público, evocando uma esperança ativa, da possibilidade de transformação. Essas novas distopias se consolidam como sucessos de público e como filmes marcantes de uma época, e assim retomam um poder do cinema de despertar, através da imagem daquilo que é falso, ou exagerado, a crítica de seu próprio contexto, e a elaboração de possibilidades novas através de seus negativos.

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