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'O apanhador no campo de centeio': o clássico prematuro que imortalizou o narrador em desajuste

\\ LIVROS

O desejo manifesto de Holden que seu interlocutor estivesse presente para ver a cena, expressa a solidão, aplacada pelo caráter dialógico da narração.

Por Giovana Proença


Jerome David Salinger / Denise Fitzgerald - Arquivo pessoal.

O apanhador no campo de centeio foi publicado pela primeira vez como romance em 1951, por J. D. Salinger, autor embebido em nuances de misticismo. O enredo centra-se em um final de semana, nas andanças do jovem Holden Caulfield por Nova York após ser expulso do internato. A interioridade do Narrador-Protagonista perpassa toda a obra na angústia por pertencimento e no constante sentimento de desajuste. O livro se tornou um marco cultural, a recepção usual da crítica coloca O apanhador no campo de centeio como um retrato da sociedade norte-americana na conjuntura pós-guerra. Mais do que isso, a magnus opus de Salinger é célebre dentro da cultura pop, revelando-se nos dias atuais um clássico prematuro, apresentado como cânone, com a notoriedade entre o público juvenil que dificilmente gozam as obras do tipo, unindo-se a outros nomes bem vistos dentro e fora do circuito literário como A redoma de vidro e O sol é para todos.


O apanhador no campo de centeio nos permite discutir as evoluções do romance como forma e o diálogo com seu próprio tempo histórico, tendo em vista o contexto norte-americano do pós-Segunda Guerra Mundial em que está inserido. Ainda é possível analisar o narrador como elemento da narrativa, uma vez que o foco narrativo de O apanhador no campo de centeio, definido como Narrador-Protagonista, permite maior individualização da personagem em seu espaço-tempo, característica fundamental ao romance.


O parágrafo de abertura de O apanhador no campo de centeio constitui o desenvolvimento do romance em sincronia com seu tempo histórico, visto que Holden, em seu local de protagonista, ironiza a estrutura do romance empregada por Charles Dickens em seu David Copperfield, de 1850.


"Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lenga lenga tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso. Em primeiro lugar, esse negócio me chateia e, além disso, meus pais teriam um troço se eu contasse qualquer coisa íntima sobre eles." 


No trecho, Salinger ironiza pela voz de Holden e propõe um rompimento com a tradição do romance inglês, sintetizada pela figura de Charles Dickens, no que diz respeito à instauração imediata de circunstâncias de tempo, espaço e agente dentro da narrativa; de modo que Holden e suas inquietações são apresentados ao leitor durante o desenvolvimento do enredo.


Holden traça um relato confessional e de tom corriqueiro, de linguagem jovial que corrobora com o momento de transição para a maturidade da protagonista. O ápice desse momento ocorre no diálogo do qual se extrai o título do livro, Holden é questionado por sua irmã Phoebe quanto às suas pretensões e profere:


"Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando e alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o que que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho de aparecer de algum canto e agarrar o garoto. [...] Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo."

 

A possível interpretação para o abismo do qual Holden almeja salvar as crianças é o amadurecimento, o contato com o mundo, que ele próprio vem experimentando, repleto de desencontros e superficialidades, do constante desajuste e do não pertencimento. Em sua atitude de revolta que beira a transgressão, Salinger compôs uma personagem que antecipa a rebeldia que permearia movimentos ligados à contracultura norte-americana quase duas décadas depois. Holden Caulfield, em sua vivência transfigurada e pautada na experiência, corrobora com a noção de Georg Lukács. Nela, o processo cujo foi concebida a forma interna do romance é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro da realidade simplesmente existente, em si heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento.


Em seu lugar de indivíduo problemático, Holden enfrenta as dificuldades do amadurecimento, conjugadas ao luto pela perda do irmão e a falta de pertencimento, alinhados na busca pela própria identidade. Esses elementos podem ser análogos ao momento histórico norte-americano, com o trauma da Segunda Guerra Mundial, cessada apenas seis anos antes da publicação de O apanhador no campo de centeio. 


O romance atua como forma inexoravelmente pautada nos alicerces da sociedade burguesa, acompanha suas evoluções e contradições. A Segunda Guerra Mundial produziu nos Estados Unidos uma geração com traumas abertos pelas proporções do conflito bélico, essencialmente relacionado a contradições do próprio modo de produção capitalista e nos desenvolvimentos de uma nova burguesia, internacional e globalizada. Desse modo, o abalo do american way of life e os rastros da Segunda Guerra foram abordados por Salinger também em sua coletânea, 9 Histórias.


A vida é um precipício para a geração pós-guerra, em seu vislumbre como testemunha do não pertencimento e da fragmentação do indivíduo em um mundo que já contemplou o horror. Salinger criou em Holden uma personagem dual e idealista, que maldiz em pensamento as concepções de sua sociedade burguesa, e  quer salvar as crianças do contato com esse mundo de atrocidades, preservando sua acentuada inocência. Para além, ele é uma personagem símbolo do desarranjo do sonho americano após o conflito bélico, cessado em 1945, captando o sentimento geral do estilhaçar da sociedade, com os rastros da atrocidade.


Desse modo, com o desenvolvimento do romance como forma, pela individuação proposta na figura de Holden Caulfied, em seu desajuste e vivências transpostas em um curto intervalo de tempo, ainda se alcança a individuação na qual se baseia o romance e a totalidade de aspectos da vida; a partir da construção e busca desse sentido, potencializada pela retratação da experiência humana.

Holden Caulfied, colocado em confrontamento de sua solidão, usa do foco narrativo como Narrador-Protagonista na procura de um interlocutor, o leitor, estabelecendo um fluxo dialógico. O diálogo entre o eu narrativo, Holden e o você (you) alcunhado no texto, permite um espaço de intimismo dentro da narrativa, que corrobora com o tom da narração. O Narrador-Protagonista até mesmo sente-se à vontade para oferecer um conselho, em reflexão ao próprio ato de narrar em atitude metalinguísitca “A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo”.


"I felt so damn happy, if you want to know the truth. I don’t know why. It was just that she looked so damn nice, the way she kept going around and around, in her blue coat and all. God I wish you could’ve been there." (Me senti tão feliz, se você quer saber a verdade. Não sei porque. O jeito que ela girava e girava era tão bonito, de casaco azul e tudo. Puxa, eu queria que você pudesse ter visto. [Tradução livre]).


O desejo manifesto de Holden que seu interlocutor estivesse presente para ver a cena, expressa a solidão, aplacada pelo caráter dialógico da narração. Em seu constante desajuste e busca por pertencimento, Holden parece ter se encontrado como narrador, ato metalinguístico em defesa do narrar.


O apanhador no campo de centeio pode ser lido como um retrato da sociedade norte – americana pós-guerra, com o desarranjo social em analogia ao desajuste e a falta de pertencimento de Holden, Narrador –Protagonista, de modo que o foco narrativo corrobora com a captação das percepções e visões dele acerca da sociedade à qual está inserido.  Assim, o livro acompanha às contradições e os desenvolvimentos sociais dos primeiros anos do Estados Unidos pós - guerra, na representação da experiência humana. Desse modo, Holden Caulfield, consolidado em sua interioridade e em sua busca pela identidade, seria uma personagem retrato da fragmentação do indivíduo na busca pela totalidade, imortalizado nos cânones ocidentais como o nome símbolo de um clássico prematuro e acima de tudo, jovem.

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