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O Amor Entreolhado

\\ CINEMA

O erótico atravessa toda a história como marca da violência. É a experiência de quando o desejo vira seus olhos para a vertigem da morte

Por Bruno Pernambuco*


Cena "Morte em Veneza" (Death in Venice), de Luchino Visconti.

[Para celebrar o lançamento da edição de outono, e também para divulgar serviços que, devido à quarentena do vírus COVID-19, abrem seus acessos, Frentes Versos buscou, no catálogo destes arquivos, obras que conversem com nosso tema, e que, valendo a pena ser vistas, possam trazer para o distanciamento mais um pouco de poesia, arte e reflexão.

Morte em Veneza, de Luchino Visconti, está disponível no streaming Belas Artes à la Carte.

***AVISO: A crítica contém spoilers. Fica o convite para que x leitxr, antes de devorar o texto, abra espaço, também, para o filme que o inspirou.]


Cena "Morte em Veneza" (Death in Venice), de Luchino Visconti.

O erótico atravessa toda a história como marca da violência. É a experiência de quando o desejo vira seus olhos para a vertigem da morte, e dela nascem o gozo, o afã, o momento sem ar. O desejo se volta sempre para a morte pois ela é o único gozo capaz de preenchê--lo inteiramente. O único orgasmo que nunca cessa, a orgia que não finda, o prazer que quanto mais se sacia mais fome tem, só nela vivem, e assim são celebrados os seus rituais, do martírio, ao suicídio, ao devoramento pela cólera.


Em Morte em Veneza essa relação é toda muito íntima, e para Gustav von Aschenbach ela tem contornos únicos. A morte não é apenas a única coisa capaz de consumar seu desejo não correspondido pelo jovem Tadzio, mas também a única que pode atender a seu ideal estético, a beleza que transcende as sensações, e inclusive a vida, limitada, imperfeita, impura. São as ironias: esse desejo, que von Aschenbach define como o “controle absoluto dos sentidos”, é na verdade o anseio da sensação absoluta trazida pela morte, enquanto o realismo e o pragmatismo de Alfred, seu contraponto, falam das sensações da vida, mundanas, traduções reduzidas do desejo.


A obra autoral de Visconti em seu filme é a transformação de von Aschenbach em um compositor (ao contrário do escritor do original de Thomas Mann), e a música é uma arte que se presta naturalmente a essa intensidade, ao fervor e à devoção da experiência do personagem. Toda a experiência do filme é musical, e o som faz ressoar a imagem do gênio perturbado. A música no filme faz vibrar também a experiência tanto do tesão quanto da doença, das sinfonias de Mahler que dão o tom a toda a obra aos momentos de intimidade em que os personagens brincam no piano, à celebração dionisíaca dos clowns. Tudo no filme transborda essa expressão natural da sexualidade, e essa sexualidade é a única certeza que se pode ter de von Aschenbach, pois suas visões são todas ambiguidades incertas, e coloridas com a possibilidade do delírio febril. Morte em Veneza trata dessa experiência, em que o desejo é consumado junto à doença, e é como se fosse apenas ela que lhe abre as portas, ao menos para essa sua forma descontrolada, irremediada.


Sinuoso, e tratando, na figura de seu protagonista, de uma realidade da “alta cultura”, da mesma forma que seu autor original, Thomas Mann, trata da alma e da cultura alemãs, Morte em Veneza traduz suas contradições, e a ambiguidade moral e intelectual de seu personagem central, em imagens belíssimas, e nisso revela mais uma dimensão do erotismo. Os planos magistrais, entre as mais belas fotografias da história do cinema, também expressam esse desejo, e trazem lembranças que falam desse mundo. Falam de uma visita compartilhada, em certo sentido universal, da experiência sexual, que abraça a todos aqueles que assistem, jogando com a proximidade a suas próprias fantasias e ao mesmo tempo com a distância do olhar de von Aschenbach. Morte em Veneza é absolutamente expressivo, comovente, e assim um clássico que perdura pois continuamente se reinventa, encontrando sempre algo presente a nos dizer, embora mais de cinquenta anos nos separem de sua première. Do filme, fica a marca de uma profunda experiência do erótico.


*Texto originalmente publicado em 3 de abril de 2020.

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