\\ ARTE
Se o poeta havia sido morto na Guerra Civil Espanhola, no Brasil, décadas depois era sepultado pela segunda vez
por Matheus Lopes Quirino
Era um monte de lataria empilhada numa amálgama, com cabos de cobre subindo, retorcidos, na ponta: uma espécie de engrenagem que pode também ser carimbo, ou uma peça de quebra-cabeças. Isso em cima, aos pés, cai uma bandeirola – importante constar, não é uma bandeira, não há nação aos pés de nada, ainda mais de ‘coisa de poeta’. Não há nada que engrandeça, aparentemente, nada sério, é apolítico, volátil, inexpressivo, pequeno. Quem passa ao seu redor, nem a nota. Agora vamos às verdades, até esse ponto é tudo questionável.
Em 2012, voltou à Praça das Guianas o monumento em homenagem ao escritor espanhol Federico García—Lorca. Depois de um vaivém, por décadas, a figura lá se encontra, hoje, praticamente intocável, no coração de uma cidade vazia – ainda mais naquelas bandas silenciosas dos Jardins. Uns passarão, em seus conversíveis importados cortando o silêncio dos casarões e ruas arborizadas. Mas e daí? Quem é García—Lorca? Flávio de Carvalho? Escultura?
São muitas perguntas ao monumento, mas ele não as responde. Está lá, paradinho, ainda noviço em comparação a outros monumentos, mas muito aprontou. Por acaso, tudo ali é vermelho. E para piorar, no centro, lá no alto, onde as outras peças orbitam, tudo se conecta com uma coroa, espécie de bolacha. Bolacha? Mas não importa. No centro do gramado daquela praça residencial está o monumento que homenageia um subversivo. Poeta, progressista, homossexual, libertário. O ponto fora da curva dos automóveis que cantam desafinado naquele receptáculo paulistano limpinho.
O monumento foi encomendado pelo Centro Democrático Espanhol no Brasil, erguido em 1968 pela prefeitura depois de ter sido projetado pelo arquiteto Flávio de Carvalho. O subversivo dos pijamas, consta-se, quando no imaginário habita a imagem chanteclair do moçoilo de bigodes desfilando pelo centro de São Paulo em um manequim seu, bem à vontade. Não demorou para vir o ato institucional Número 5, em 1969, e jogar aquele monte de parafernálias em um ferro velho. No meio do caminho não houve pedra alguma, mas sim uma explosão que danificou as estruturas, vinda como cavalo de Troia de radicais de direita que deviam estar ocupadíssimos. Mas a história fica ainda mais emocionante.
Flávio era um agitador. Artista plástico, consagrou-se com uma série de retratos para lá de expressionistas, ao mesmo tempo em que colaborava com a imprensa escrevendo críticas de arte, arquitetura e moda. O próprio New Look, saiote de patente sua, foi um experimento que havia dado certo nas páginas de jornal. Ao menos em repercussão, o que se repetiu nas ruas.
Aos olhos da ditadura, o artista era maldito. Não só devido a suas inclinações políticas, mas à sua natureza. Em 1969 ele já era um nome consagrado nas artes plásticas nacionais, seu monumento é um exemplo de como o surrealismo o influenciou, depois de tantos estudos sobre as escolas clássicas. Foi um artista multimídia e, já perto do fim, reinventou-se sem frescuras.
Quando o monumento foi surrupiado pelos censores, não demorou muito para que dessem falta. Hoje, talvez não houvesse uma ação tão concreta, digamos, mas na época houve. Fernando Meireles, o diretor de Cidade de Deus, era estudante da FAU—USP, venerava Flávio de Carvalho, sabia quem era García—Lorca, entendia a importância daquela escultura estar ali, e resolveu agir nas sombras. Portanto, respondeu às perguntas do início deste texto já naquela época.
Juntou-se a uns cabeludos da ECA, com uma missão: resgatar García Lorca. Se o poeta havia sido morto na Guerra Civil Espanhola, no Brasil, décadas depois era sepultado pela segunda vez, quando a ditadura passa a mão em seus louros com a intenção de deixá-los a sete palmos. A obra passou por vários depósitos, mas para encurtar a história, estava em Cotia, Flávio descobriu e deu a cara a tapa.
Foi ao cemitério de destroços com um caminhãozinho e dois amigos seus, falsificou papéis e carimbos da prefeitura para resgatar o monumento que estava em pedaços dispersos. O que foi descoberto só um dia depois; em São Paulo, a escultura ficou anos na USP. Depois, acabou parando no vão livre do MASP, até voltar à Praça das Guianas.
A história é muito mais emocionante, e quem conta todos os detalhes sórdidos é o jornalista Cadão Volpato, no ano um da revista Piauí. “A ideia do roubo começou a nascer durante uma aula de Gustavo Daher na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, a FAU. O tema do professor naquele dia era o expressionismo na arquitetura e o personagem principal, Flávio de Carvalho.”, relata.
De tantos vaivéns, restauros, fugas, histórias policiais, a escultura rende conteúdo para os curiosos, mas precisa ser vista. Confinada no bairro jardim, um arauto subversivo da natureza da obra de Carvalho se perde. Se realocar for um imbróglio, convém a cidade pensar em como visibilizar seus marcos. Mas é uma ação para um futuro ainda distante. Por ora, hoje quieta e distante do mundo real, ela cumpre seu isolamento social, em tempos de coronavírus como os que podem.
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