\\ CINEMA
Diretor conduziu obras-primas do cinema neo-realista italiano como Oito e Meio e A Doce Vida
Por Bruno Pernambuco
Federico Fellini (Walter Albertin, 1965)
Acudam-me, por favor. Um texto a procura de seu caminho, tal qual os personagens de Pirandello à procura de sua história. Tal qual as criações de Fellini constantemente, em seu mundo, estão à procura de sua própria vida. As fotografias de Federico evocam uma espécie de dança com o vazio, com uma presença viva que não se encontra totalmente, e que também nunca se diz por inteiro. Que não fala diretamente com a realidade, mas que constantemente a ultrapassa, entra nela e depois lhe abandona. A festa acende-se, o beijo acontece, a lágrima escorre o rosto de Giulietta Masina, e vê-se Mastroianni à contraluz de si mesmo. As imagens de Fellini muitas vezes parecem fugidias e difíceis de alcançar, e são mais verdadeiras quanto menos certas estão, e quanto mais foge a sua lembrança inicial. Os buracos da memória são seu tema privilegiado, e é eles que cresce o espaço para a invenção onírica. A felicidade, nesses sonhos que Fellini nos entrega, nunca está exatamente aqui, mas também nunca está muito distante.
Se ao falar sobre Fellini é difícil separar o homem da mitologia- clichê dos clichês dizer isso- não quer dizer que, estabelecida essa duvidosa separação, seja fácil falar sobre o artista multifacetado, ilustrador, e cartunista, além de diretor, sobre a figura carismática, excêntrica e estóica, do artista que idealizou filmes tão emblemáticos de um momento da história do cinema. É impossível fazer qualquer retrato do autor que não seja incompleto. Fellini parece encontrar aquele grau da realidade com o qual Borges pensa estar falando, e isso nele se traduz somente na simplicidade dos gestos de seus personagens, do espalhafatoso das constantes interrupções, e da emoção com que é carregado cada elemento de sua cinematografia simples e humana. Toda a ironia em Fellini se inverte em realidade. Tudo aquilo que é tragicomédia em uma fase inicial de sua carreira, ou exagero e galhofa da realidade, além de negação das fórmulas narrativas tradicionais- da explosão de memória de Amarcord ao riso sutil de A Doce Vida e Oito e Meio- em suas obras mais consagradas, e que em uma fase final se transforma abertamente em metalinguagem, serve como um retrato dessa vida que nem está na existência exata nem é exatamente a existência do sonho. Trata-se de um artista em metamorfose, e isso se reflete na trajetória dos seus filmes, do tragicômico ao melancólico ao histórico. Essas diferentes fases estão claramente unidas, mas ainda assim é difícil dizer o que é que as junta. Se existe realmente o “felliniano”, essa definição que o autor rejeitava e desgostava, ele está nesse sentimento invisível e sem definição, que vagueia entre o sentimento de uma época- as imagens e inquietações que envolvem o momento de uma transformação completa do cinema, a passagem do preto-e-branco para o technicolor, e a experimentação radical de novas linguagens, ao mesmo tempo que o papel dessa arte se transforma inteiramente, com o surgimento dos grandes estúdios e o início da indústria de cinema; além das questões de uma geração que, passando pela catástrofe da segunda guerra, pela crise econômica e em seguida pelo boom, se vê enfrentando a própria emoção, reprimida sob a onda dessas mudanças históricas, e seu próprio fazer artístico, transformado tanto materialmente quanto em seus pressupostos- e experiências universais, ou mais primitivas, que ressoam de outra forma na alma. É muito difícil falar a respeito de Fellini pois sua arte é a de fazer com que tudo pareça natural- e realmente o é. É extremamente complicado falar sobre o trabalho do diretor partindo apenas dessa cortina de naturalidade; De certa forma, a lembrança centenária que ficou do homem de Rimini parece ser a consumação dos projetos do neorrealismo que imediatamente o antecedeu. Uma das muitas marcas de Fellini é ter se tornado esse diretor invisível, aquele que, ao filmar a realidade, é como o ator do teatro nô, que apontando para a lua direciona a atenção da plateia para o astro, e não para o seu gesto. Que essa ideia só pôde se realizar totalmente com esse distanciamento da realidade, e com o caminho para a imagem autoral, para essa memória do autor que evoca também uma memória universal, e uma imagem que é arquetípica, talvez diga algo a respeito da natureza do cinema. Mas Fellini é, apesar de tudo, um autor tão original que é estranho falar sobre generalidades ao analisar seu cinema, ainda que ele parta de imagens que ressoam com essa força. O diretor é um artista da memória, do sonho e da invenção- se não forem todos a mesma coisa- e com isso brinca com o universal e com o particular, invertendo-lhes e lhes transformando um no outro. Só o que é sólido nessa passagem é a permanência das imagens, e a certeza de que não se é o mesmo após esse encontro. O encontro com Fellini deixa essa marca, da delicadeza da lágrima ao instante do sorriso entreaberto. O encontro com a casa, o terremoto que a ergue em vez de lhe desfazer.
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