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'Mrs. Dalloway' potencializa os momentos de ser em Virginia Woolf

  • Foto do escritor: Frentes Versos
    Frentes Versos
  • 17 de jun. de 2020
  • 3 min de leitura

\\ LIVROS

A obra é o mais afamado trabalho da escritora inglesa, e se mantém visceral e relevante no século XXI

Por Laura Pilan, colaboração para Frentes Versos


Virginia Woolf em 1902, por George Charles Beresford.

Há um caleidoscópio de memórias, uma miríade de impressões impulsionada pelo soar das badaladas do Big Ben. O som dos sinos une personagens de vidas aparentemente opostas e a modernidade apresenta-se como progresso e malefício à medida que aviões percorrem o céu londrino. E há flores – que a Sra. Dalloway decide buscar sozinha.

“Mrs. Dalloway” é o romance escrito por Virginia Woolf e publicado pela primeira vez em 1925. Nele, Woolf tinha alguns planos – entre os quais, apresentar a vida e a morte, a sanidade e a insanidade. Trata-se de um projeto bastante ambicioso, mas respondo, sem hesitar, que seus objetivos foram concluídos com exímio sucesso e implacável talento.


No centro, parece estar Clarissa – mas não se enganem. O título que a obra recebe a apresenta, antes de tudo, como uma mulher casada e que atende pelo nome do marido – o Sr. Richard Dalloway. Sua imersão na burguesia inglesa, a preocupação com vestidos e banquetes e outras futilidades não são as características que a definem – são as que a reduzem. A personagem revela um de seus traços mais importantes através da escolha, aparentemente banal, de comprar as flores para a festa que planeja: ainda que existam criados para servi-la, há o ímpeto – irreprimível – de agir por conta própria. Suas controvérsias são criadas quando muito do que diz e faz destoa drasticamente do que pensa – e Virginia exprime a interioridade de suas criações como ninguém.


Em um de seus diários, Woolf revela que tem como preocupação cavar belos subterrâneos atrás de seus personagens. Isso significa que todos são um terreno explorável, profundo, preenchido por desejos, anseios e pelo passado – um tempo extremamente doloroso para alguns. Septimus Warren Smith é um reflexo dessa história pungente e lancinante, uma vez que é a única expressão das consequências materiais da Primeira Guerra Mundial – tragédia que abalou a vida, a cultura e a expressão do sujeito por meio da arte.


Virginia Woolf vivenciou a catástrofe. Há textos em que descreve o som dos canhões e a luz dos holofotes. O lirismo de sua prosa, sensível e precisa como a pincelada que compõe um quadro, não é uma atenuação do desastre – é na beleza das palavras que ele se acentua. Um leitor desavisado pode se iludir com facilidade e, por isso, advirto: “Mrs. Dalloway” não é uma ode ao universo feminino. Sra. Dalloway é alguém que se agarra a normalidade para evitar o colapso. Alguém incerta sobre as pessoas que deixou para trás, em dúvida sobre as escolhas e os sacrifícios diários que a conduziram até ali. Ela é, antes de tudo, um punhado de momentos de ser.


É quando Clarissa esbarra com Septimus que seus destinos colidem e a narrativa adquire sua verdadeira forma – a realidade da mulher coberta por luxo enfrenta o trauma de um veterano de guerra. Essas linhas narrativas se embaralham em um modo impossível de ser desatado e é no plano do não-dito, do subentendido, que se estabelece a relação de duplos entre os dois. Sra. Dalloway e Smith são espelhos, imagens invertidas um do outro.


Depois do choque entre figuras tão díspares, é impossível voltar atrás. Septimus não a percebe – sua mente está submersa em delírio e paranoia –, mas Clarissa reconhece nele o que poderia vir a ser. Como lados de uma mesma moeda, os dilemas de vida e morte acompanham seus pensamentos de perto nesse trajeto que dura um dia. Woolf condensa em vinte quatro horas a dúvida mais essencial que alguém poderia nutrir: dar continuidade ou encerrar a própria existência? Sra. Dalloway e Septimus optam por soluções diametralmente opostas. Não sabemos se é trágico ou libertador, excelente ou pura resignação e conformidade. Talvez não haja uma resposta.


O êxtase da última linha obriga o leitor a soltar a respiração que prendeu na primeira sentença, há quase duzentas páginas atrás. Finalmente, percebe: há uma existência para ele também – que precisa ser dissecada. Seus fantasmas do passado ainda arranham as paredes do quarto e do corpo, as palavras nunca pronunciadas seguem presas na garganta – como as que Peter desejava dizer para Clarissa e vice-versa. Ainda precisa conhecer a passagem do tempo e descobrir o que sobreviverá a ela. Mas, acima de tudo, deve decidir se a vida que tem é o bastante – se é tudo o que resta a ser vivido.


A autora confessou, certa vez, que o motivo pelo qual lemos é o prazer que um livro nos desperta. Este prazer pode ser difícil, doce-amargo, como é “Mrs. Dalloway”. Mas é a inquietação, a dificuldade em apreender o jorro incessante de átomos que constitui a vida, que transforma a leitura em uma experiência em inesgotável. Nunca se terá lido o bastante de Virginia Woolf.


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