\\ ARTE
A partir do conjunto de obras apresentadas brevemente, evidencia-se a importância da obra Metaesquema sêco nº 27 como farol e síntese de uma série de questões que continuarão a ser trabalhadas por Hélio Oiticica.
Ygor de Góes Sena, colaboração para Frentes Versos
Estudar a trajetória artística de Hélio Oiticica (1937-1980) é lidar com uma produção rica, multifacetada e até contraditória – não muito diferente do Brasil daqueles tempos, cujas décadas de 50 e 60 suscitam continuamente os mais diversos trabalhos no campo das humanidades dedicados à compreensão desse período, com especial atenção aos acontecimentos políticos.
Pintor, escultor e artista performático, Hélio Oiticica é bastante
lembrado por sua “fase sensorial”(1), marcadas por obras de dimensões ética, social e política, que exploram o espaço ambiental e a participação ativa do público. Entretanto, para compreender a obra tardia do artista é fundamental ter em mente a sua produção inicial, onde as primeiras inquietações ganharam forma.
Dessa maneira, os esforços deste texto se voltam para a obra Metaesquema sêco nº27 (1957), um marco na carreira de Hélio Oiticica. Nas palavras do artista, esse trabalho “desconcertante” sinalizou o nascimento dos “bilaterais”, “núcleos” e “penetráveis” e, portanto, de uma transição da “fase visual” para a “sensorial”.
Hélio Oiticica começa a estudar pintura e desenho em 1954 com Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ) e, com liderança deste, participa do Grupo Frente entre 1955 e 1956. O grupo foi pioneiro na introdução da abstração geométrica no Brasil. Apesar da variação de estilos entre seus membros, todos estavam informados acerca das discussões sobre abstração e arte concreta(2) e se colocavam em oposição ao caráter figurativo e nacionalista da arte moderna brasileira.
Tendo estudado os fundamentos da arte concreta, Hélio Oiticica realiza uma série de experimentos entre 1957 e 1958 que seriam nomeados posteriormente de metaesquemas pelo próprio artista em 1974, na ocasião do acompanhamento e realização de uma exposição sobre o período supramencionado na Galeria Ralph Camargo.
“Não há porque levar a sério minha produção pré-59”. É de maneira irônica que Hélio Oiticica inaugura seu texto para o catálogo da exposição, seguida da definição de metaesquema até o fim: a começar com “obsessiva dissecção do espaço”, passando por “desconhecimento-desprezo”, “voltar costas”, “plano q se quer reduzir à linha”, “representação última”, “a representação se havia secado”, “limite-esvaziamento da representação”, “limites do fim da representação”, “a pintura também chegava ao seu fim”, “espaço-bagaço”, “dissecação do espaço”, “caderno de aula”, “aprendizado”, “lição de formação”, “descoberta do fim da pintura”, possibilidades paralém da pintura”, “esquemas de possibilidades”, “liberação d’obrigações”, “estrutura infinitésimada”, “abertos às estruturas abertas”, “incursão sensorial” e concluindo com a conceituação com “metaesquemas: avesso em vez de resultado”.
Nota-se, portanto, que perpassa pelos metaesquemas imagens de oposição ao existente, de limitação, de experimentação e de liberação(3). A discussão sobre as motivações da revisita de Hélio a sua obra inicial, o controle e a pertinência desse discurso em relação ao que se comentava a respeito dessas experimentações podem ser objetos de uma pesquisa muito interessante(4).
Aqui, chama-se a atenção para as imagens e o sentido dos metaesquemas trazidos pelo próprio artista. Ao enviar diretivas sobre a exposição para Luís Fernando Guimarães, Hélio enfatizou que os “metaesquemas de 1957/58 (não podem nunca ser referidos como desenhos ou pinturas)”. Por definição, um esquema é uma figura que representa as relações e funções das formas dos objetos. Assim, metaesquema é um esquema de um esquema, isto é, relações e funções das formas das relações e funções. Em outras palavras, um metaesquema traz à tona a percepção do esquema simultaneamente enquanto esquema e forma – a forma da forma.
A leitura sinalizada por Hélio em relação a sua fase inicial faz pensar seus metaesquemas como um conjunto não necessariamente ordenado de estudos, onde se busca explorar questões teóricas da arte, fenomenologia e as inquietações do artista. Trata-se de um momento de libertação e experimentação. De fato, em cerca de dois anos, Hélio produziu mais de 350 metaesquemas(5).
As variações temáticas e os problemas trabalhados nesses estudos merecem ser observados com esmero. Para os fins breves deste texto, entretanto, os metaesquemas no geral aparecem como bons exemplos de obra de arte concreta: o domínio plástico das formas não-figurativas constitui elementos que se articulam entre si e no todo, os conjuntos e subconjuntos estabelecem um jogo dinâmico mediante o qual a forma inicial se transforma e retorna ao seu oposto. O resultado é uma totalidade equilibrada e dinâmica, cujo efeito é um ciclo sem fim, eternamente em movimento.
Imagem 1 (esq.): Metaesquema, s. d., guache sobre papel, 40 x 60 cm. Imagem 2 (dir.): Metaesquema, s. d., 55,0 x 63,9 cm.
Na imagem 1, veem-se quatro fileiras de retângulos subdivididos em quatro partes. A desarticulação sutil entre todos elementos, ora para cima ou para baixo, para esquerda ou para a direita, o aumento ou a redução dos volumes de baixo para cima ou de cima para baixo, os dois únicos retângulos sem ângulos retos internos no centro da composição e o contraste do branco com o azul criam a sensação de múltiplos movimentos das “frestas” alvas que desalinham crescentemente os elementos azuis. São como folhas assobiadas pelo vento ou impulsionadas pelas ondulações de um lago modesto a se moverem pela superfície da água cristalina.
A imagem 2 nos remete vagamente ao esquema anterior. Entretanto, percebe-se que os doze elementos retangulares se tocam e até se sobrepõem, como no caso do segundo e terceiro elementos, ambos da esquerda para a direita e de cima para baixo. São os dois quadrados centrais sobrepostos a resultar na percepção, na verdade, de um único grande retângulo a ser perfurado, rasgado e fragmentado por inúmeros elementos pontiagudos em diferentes sentidos e intensidades, sempre alternadas. Desta forma, é cabível pensar na possibilidade do metaesquema anterior ter sido também um único e majestoso retângulo, em processo mais avançado de desintegração que o estudo presente. Em ambos os trabalhos, suas diferenças constituem sintaxes específicas, cujos encadeamentos de desalinhos e ordenação elaboram um equilíbrio dinâmico singular.
Imagem 3 (esq.): Metaesquema, 1958, 34,7 x 55,2 cm. Imagem 4 (dir.): Metaesquema nº 229, 1958, guache sobre cartão, 26 x 42,1 cm.
Em outra chave de experimentações, é o objeto bruto que se alonga e se contrai. A deformação ganha força visual e confere um longo movimento ou desvio a esse elemento plástico. As imagens 3 e 4 são exemplos interessantes. A primeira, constrói o efeito visual de duas forças em sentido vertical que deformam os quatro retângulos nas direções para cima ou para baixo. Se observamos a mesma obra novamente rotacionada a 90°, a percepção será outra: duas forças distorcem em sentido horizontal os elementos vermelhos para a direita ou para esquerda, suavemente.
O sentido de visualização dos metaesquemas altera a maneira de percebê-los e julgá-los. Por vezes, isso aparece explicitamente tal qual na imagem 4. Aqui, dois retângulos em extremidades opostas deturpam as figuras centrais. A imagem direita é a mesma da esquerda, porém espelhada verticalmente e rotacionada 90º em sentido horário. Em decorrência dessa operação, tem-se a impressão que a imagem da esquerda é uma visualização em planta, com sentido longitudinal. Por outro lado, a imagem da direita parece uma elevação, predominantemente latitudinal.
Essas distorções ganham significação outra quando trabalhadas com linhas. O caráter de movimento não apenas é evidenciado como sugere uma dobra da figura para a direção do observador ou do papel, tal qual a imagem 5.
Imagem 5: Metaesquema, s. d., 39 x 43 cm.
Em linhas gerais, os metaesquemas vistos até agora, por um lado, apresentam características de uma obra de arte concreta. Possuem articulações e regras particulares nos seus conjuntos e subconjuntos elementares, são coplanares, de formas geométricas, sem fundo ou figuras. Por outro lado, a racionalidade está a serviço da subjetividade. Os trabalhos apresentam características de tensionamento das regras que informam essas relações, seja pela associação livre e ambígua dos elementos entre si – simultaneamente vários ou uno, de múltiplos sentidos ou direções –, seja pela problemática fenomenológica do observador, capaz de subverter e encontrar outros metaesquemas em um mesmo metaesquema. Dito de outro modo, é como se algumas experimentações tensionassem ao limite o próprio espaço pictórico de onde nasceram.
Os diversos problemas explorados até aqui parecem adquirir clareza para o próprio artista quando diz, ao revisitar a obra Metaesquema sêco nº27 mais de onze anos depois:
“Considero este trabalho importante hoje, e para mim, na época foi disconcertante pelo sentido de “diluição estrutural” além do espaço meramente pictórico – é que eu ainda queria a renovação deste espaço, mas ainda não estava preparado para o salto, ou a transformação – mas hoje vejo que este trabalho estava bem à frente, no conflito entre espaço pictórico e extra-espaço, e prenuncia diretamente o aparecimento dos Bilaterais, Núcleos e Penetráveis.”
A experimentação exaustiva com o espaço da tela revelou o obstáculo das estruturas formais gráficas no embate e ânsia de expansão das inquietações metaesquemáticas para o espaço extra-pictórico, para além de sua bidimensionalidade inerente.
Imagem 6: Metaesquema sêco nº 27, 1957, guache sobre papel, 40,3 x 47,5cm.
Imagem 7: Malha estrutural de referência para elaboração do Metaesquema sêco nº 27. Elaboração própria (2020).
O leitor que estudar demoradamente a imagem 6 perceberá o embaralhamento, contração e expansão do espaço virtual formado em virtude do jogo da proximidade e distanciamento dos losangos menores e maiores entre si a partir de diferentes agrupamentos. O gesto é singelo: somente a manipulação das arestas das figuras geométricas é suficiente para causar tamanha expansão espacial para frente e para o fundo, para baixo e para cima. O movimento do espaço pictórico gerado é potencializado pelo único elemento geométrico de tonalidade quente, em contraste com todos os outros em cores frias. Além disso, o destaque cromático dado ao losango central aproxima-o do espectador e empurra os elementos restantes para o fundo, resultando na sensação de ampliação de distância dos elementos entre si.
A malha estrutural é subvertida por completo apesar da engenhosa elaboração, de forma radial a partir do centro: 3 módulos (com losangos maiores), 2 módulos (com losangos menores), 3 módulos repetidos duas vezes (com losangos maiores ou menores) e 1 módulo (com losangos menores).
A partir do conjunto de obras apresentadas brevemente, evidencia-se a importância da obra Metaesquema sêco nº 27 como farol e síntese de uma série de questões que continuarão a ser trabalhadas por Hélio Oiticica. Desta vez, com o espaço real e a participação do espectador. Se por um lado, é importante considerar a série Metaesquemas como um conjunto independente de muitos problemas teóricos e práticos do artista naquele momento; por outro, pode-se falar em certa continuidade e amadurecimento de suas indagações mais pungentes através dessas obras, que reverberarão nos trabalhos subsequentes. Seja como for, são as oscilações e consistências na sua trajetória artística que tornam a sua produção muito rica e admirada por aqueles que a conhecem.
NOTAS DO AUTOR
A obra de Hélio Oiticica tem, por assim dizer, duas periodizações: as fases visual e sensorial. Esta caracterização foi feita pelo crítico Celso Favaretto em seu livro A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp, 1992. p. 49.
Arte concreta: arte sem qualquer conotação lírica ou simbólica a trabalhar os elementos plásticos de linha e plano. Ou seja, a significação da obra é dada pela arte em si. Embora isto não signifique que se trata de uma arte abstrata, nos termos de Van Doesburg: “nada é mais concreto, mais real, que uma linha, uma cor, uma superfície.”
CONDURU, Roberto. “Metaesquema, metaforma, metaobra”. Anpap, 2008. p. 8.
É possível conjecturar sobre o rígido controle sobre o discurso das obras tendo em vista uma estratégia de manter distanciamento da compreensão desses trabalhos como uma forma canônica da representação artística de figura e fundo e sobressaltar os seus aspectos disruptivos.
MALBA. Hélio Oiticica. Disponível em: <https://coleccion.malba.org.ar/metaesquema-2/>. Acesso em: 19 de julho de 2020. Há se cotejar mais fontes: MOURA, Flávio menciona mais de 700 metaesquemas produzidos por Hélio Oiticica.
Referências bibliográficas:
CONDURU, Roberto. “Metaesquema, metaforma, metaobra”. Anpap, 2008.
FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp, 1992.
HÉLIO Oiticica. In: ENCICLOPEDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa48/helio-oiticica>. Acesso em: 16 de julho de 2020.
MOURA, Flávio Rosa. Obra em construção: a recepção do neoconcretismo e a invenção da arte contemporânea no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia), FFLCH. USP: São Paulo, 2011.
Programa Hélio Oiticica. In: ENCICLOPEDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa48/helio- oiticica>. Acesso em: 18 de julho de 2020.
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