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Primeira romancista brasileira – e negra – permanece esquecida no âmbito do universo literário brasileiro.
Por Humberto Tozze*, Colaboração para Frente & Versos
Passados quase 160 anos, pouco se conhece ou fala a respeito da autora de “Úrsula”, a primeira obra de combate à escravidão no País. Embora tenha sido pioneira em muitas conquistas, Maria Firmina dos Reis permaneceu esquecida por quase um século.
Mulher negra, autora, professora de português, folclorista, poeta e compositora, ela foi a primeira romancista brasileira. Nascida em 1825, na ilha de São Luís (MA), filha de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis, pai negro e mãe branca. Não chegou a conhecer o pai e foi na casa de uma tia materna onde se deu sua formação intelecto-cultural, em ambiente predominantemente feminino. Além de ter sido prima do jornalista e crítico literário, Francisco Sotero dos Reis (1800 – 1871) que influenciou fortemente os seus estudos e engajamento com a escrita.
Em 1859 lançou o seu primeiro romance, “Úrsula”, 30 anos antes de ser promulgada a Lei Áurea. Foi essa a primeira obra de cunho abolicionista lançada no Brasil, vista a partir do olhar do negro. Sua obra foi recuperada por pesquisadores brasileiros em 1962. Diz-se que o romance foi encontrado perdido em um sebo no Rio de Janeiro pelo historiador paraibano Horácio de Almeida (1896 – 1983) e em seguida entregue ao então governador do Maranhão, Nunes Freire.
Desde 1850, por meio da Lei Eusébio de Queirós (Lei nº 581), promulgou-se a proibição do tráfico de escravos. Em 1854, com a Lei Nabuco de Araújo (Lei nº 731), visando endurecer o contrabando de escravos, todos aqueles importados por terra deveriam ser libertados. O romance, como outros do romantismo brasileiro, a princípio, narra a história de um triângulo amoroso, construído em torno da personagem Úrsula, uma jovem branca, Tancredo, um jovem de posses, e o inescrupuloso tio de Úrsula. Ali, não é por meio da personagem central que a denúncia ocorre, mas por vozes de personagens secundárias, como a escrava Susana, que conta o violento trajeto da África, onde era livre, para o Brasil. E também mediante a figura dos escravos alforriados, Túlio e Antero.
A pesquisadora Bárbara Loureiro Andreta da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em artigo “A Voz e a Memória dos Escravos: Úrsula, de Maria Firmina dos Reis”, fala da originalidade da obra: “Em Úrsula, observa-se uma solidariedade para com o oprimido, o que também é verificado no conto A escrava. Esta solidariedade é absolutamente inovadora se comparada à existente em outros romances abolicionistas do século XIX, pois esta nasce de uma perspectiva outra, através da qual a autora, irmanada aos cativos e aos seus descendentes, expressa, através da ficção, o seu pertencimento a este universo de cultura”.
A primeira edição do romance foi publicada em anonimato, apenas com o pseudônimo “Uma Maranhense”. Sabendo que a condição de mulher poderia atrair olhares negativos pelos leitores. No prólogo do livro, Maria em tom de justificativa diz:
“Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida; o seu cabedal intelectual é quase nulo. ”
Além do contexto da escravidão, Maria também estava atenta para as questões de gênero e as narrativas de sujeitos sociais. Suas obras anteciparam outras conhecidas pelo teor crítico à escravidão, como os poemas de Castro Alves (1847-1871), popularmente conhecido como “poeta dos escravos. Alves publicou seu primeiro poema contra a escravidão apenas em 1863, quatro anos após o lançamento de “Úrsula”.
“A MENTE, ESTA NINGUÉM PODE ESCRAVIZAR”.
Ao mesmo tempo – para além de uma carreira enquanto autora – Maria acumulou muitas conquistas no magistério. Com 22 anos foi aprovada em concurso público (Cadeira de Instrução Primária) e tornou-se, assim, a primeira mulher concursada no Maranhão, ocupando o cargo de professora de Primeiras Letras, carreira que levou até 1881, quando se aposenta.
Em 1880, aos 55 anos, a maranhense fundou a primeira escola mista gratuita no vilarejo de Maçaricó, na cidade de Guimarães, que buscou integrar filhos de donos de terras e de lavradores, unindo brancos e negros. A escola foi encerrada após dois anos e meio, devido à perplexidade da sociedade com tal iniciativa.
Desde 1758, estabeleceu-se por lei que deveria haver duas escolas, uma para meninos e outra para meninas. O que não significou um amplo acesso a toda a população, muito menos às mulheres e negros. Em 1827, com a Lei Geral – medida de D. Pedro I – criou-se um padrão de escolas de Primeiras Letras no País. Às mulheres não eram oferecidas as mesmas disciplinas que aos homens, e que em sua maioria eram matérias voltadas para as “artes do lar”.
Segundo, Rafael Balseiro Zin, doutorando da PUC-SP que investiga a trajetória intelectual da romancista, “o fato da maranhense ter fundado a primeira escola mista do país evidencia o fato de ter sido ela uma mulher consciente do papel de transformação que poderia exercer naquela sociedade, ainda mais se considerarmos o tipo de educação que recebiam as meninas no séc. XIX.”
Ainda hoje não se tem dimensão completa sobre a produção literária de Maria Firmina, pois muito de seus trabalhos foram roubados, como aponta o biógrafo Moraes Filho em “Maria Firmina: fragmentos de uma vida” (1975).
A partir de 1860 foram encontrados registros de uma ampla participação da romancista em veículos da imprensa maranhense. Seus poemas foram publicados nos jornais “O Jardim das Maranhenses”, “O Comércio”, “A Imprensa”, “Eco da Juventude”, “Porto Livre”, “A Verdadeira Marmota”, “Federalista”, entre outros. A forte presença em veículos como esses aponta boa recepção do público leitor com as obras de Maria, que naquele momento assinava com seu próprio nome. Além de sinalizar o fortalecimento de uma visão abolicionista.
Ainda assim, é tida como estratégia de narrativa uma escrita que busca não afastar os leitores brancos de sua obra. Utiliza-se assim argumentos cristãos para denunciar o caráter odioso da escravidão. A exemplo do personagem Túlio no trecho:
“Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo – e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!… a aquele que também era livre no seu país… aquele que é seu irmão?” Úrsula.
Entre seus poemas mais citados estão: “Gupeva” (1861), “Cantos à beira-mar” (1871) e “A Escrava” (1887). Um ano após a Lei Aurea, em 1888, Maria compôs o Hino à Liberdade dos Escravos.
Hino à Liberdade dos Escravos (1889)
Salve Pátria do Progresso! Salve! Salve Deus a Igualdade! Salve! Salve o Sol que raiou hoje, Difundindo a Liberdade! Quebrou-se enfim a cadeia Da nefanda Escravidão! Aqueles que antes oprimias, Hoje terás como irmão!
Maria Firmina dos Reis faleceu em 1917, aos 92 anos. Sua produção literária, assim como a sua posição de enfrentamento contra a escravidão, têm sido crescente objeto de estudo por pesquisadores. Na educação secundária, entretanto, Maria Firmina dos Reis, ainda permanece desconhecida.
Sobre o esquecimento a respeito da autora, a pesquisadora Bárbara Loureiro Andreta aponta que ele não se dá por acaso, mas é fruto de uma escolha consciente: “uma combinação de fatores, tais como a autoria feminina, autoria afrodescendente, procedência de uma província distante e principalmente, a forma inovadora como a escravidão foi tratada, fizeram com que esta obra ficasse silenciada por tantos anos”.
Escute o trecho do romance “Úrsula, em que a escrava Susana relata sua vinda da África para o Brasil, lido por Tainá Félix – atriz negra e feminista.
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(Os textos de colaboração não expressam necessariamente a opinião da F&V)
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