Leia um capítulo de “Bicha”, livro-reportagem sobre futebol e homofobia
- Frentes Versos
- 2 de jul. de 2019
- 17 min de leitura
Atualizado: 10 de abr. de 2020
\\ LIVROS
João Abel*, Especial para Frente & Versos
Ilustra o post desenho de Arthur Camargos, vencedor da terceira edição do concurso Homofobia Fora de Moda (2014)/divulgação
O futebol é uma manifestação cultural. Mas onde estão os LGBTs no futebol? ‘BICHA’ é um livro que analisa o cenário de homofobia no esporte mais popular do país, trazendo à tona a luta de pessoas que querem mudar essa realidade: sejam elas jogadores profissionais, torcedores ou atletas amadores.
Na obra, estão histórias de resistência como a do primeiro jogador a assumir a homossexualidade na Inglaterra dos anos 1980, a torcida gay que enfrentou o preconceito nos tempos de ditadura militar e o primeiro time de homens transexuais do Brasil.
Leia o primeiro capítulo, abaixo:

Ser negro e gay na Inglaterra dos anos 1970 não era fácil. Não é até hoje. E a situação se agrava ainda mais quando sua infância é problemática. O pequeno Justin sentiu isso na pele ao ser deixado no Barnardo’s, um orfanato de Essex, no sudoeste britânico, quando tinha apenas três anos. Nascido em fevereiro de 1961, foi batizado Justinus Soni Fashanu. Era filho da enfermeira guianesa Pearl Gopal e do advogado nigeriano Patrick Fashanu, dois imigrantes que se mudaram para o velho continente em busca de melhores condições financeiras e que tiveram ainda outros três filhos: John, Dawn e Adeshina. Quase trinta anos depois, no início da década de 1990, Justin Fashanu marcaria o nome na história ao se tornar o primeiro jogador de futebol da liga inglesa a assumir a homossexualidade publicamente.
As leis sobre pensão não eram exatamente as mais rígidas naquele período e, depois da separação do marido, Pearl não viu outra saída senão deixar os dois meninos, Justin e John, na casa de acolhida para crianças. “Se eu tivesse condições, não os deixaria de modo algum, mas financeiramente eu era muito limitada. Não havia opção”, ela declarou em 2017, em entrevista aos cineastas Adam Darke e Jon Carey, que produziram o documentário Forbidden Games¹, sobre a vida do ex-jogador. Mas Justin jamais entendeu por que a mãe o havia abandonado. Era devastador para o menino ser deixado, primeiro pelo pai, que voltou à Nigéria, e depois pela mãe. Restara a ele apenas o irmão, um ano e meio mais novo. Justin se tornou o protetor e melhor amigo de John, que era uma criança extremamente insegura e tinha dificuldades de fala. Estavam o tempo inteiro juntos, apegados. Como o último laço de sangue que ainda tinham por perto.
A infância longe dos pais foi difícil, mas antes que Justin completasse cinco anos de idade, o caminho dos pequenos Fashanus cruzou com o de Betty Jackson. Moradora de Shropham, pequeno vilarejo no condado de Norfolk, a pouco mais de 100 quilômetros do orfanato, ela decidiu, junto do marido, adotar os irmãos. Ainda que estivesse insegura sobre a questão racial envolvida.
Justin e John se tornaram os únicos negros da minúscula Shropham e, logo, ficaram conhecidos por todos os vizinhos da família Johnson. Para se ter noção, um censo populacional realizado em 2001 apontou que a vila tinha apenas 351 habitantes² em uma pequena área de 11 quilômetros quadrados. A menor cidade brasileira, Serra da Saudade, em Minas Gerais, tem um tamanho trinta vezes maior e uma população de 786 segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)³. Morar em um lugar onde todos se conhecem colocou os garotos em evidência e não amenizou a discriminação que eles sofriam na escola ou nas ruas do bairro. Eles viveram durante a infância o auge da tensão racial no mundo: o ano de 1968.
Nos Estados Unidos, Martin Luther King liderava as marchas do movimento negro antes de ser brutalmente assassinado a tiros no dia 4 de abril daquele ano, em Memphis, segregacionista cidade do sudoeste norte-americano. Saiu da vida para se tornar mártir e irrompeu ainda mais protestos do movimento Black Panther [Panteras Negras] após sua morte, tanto nas ruas quanto no campo esportivo. Uma das imagens mais marcantes do século 20 foi protagonizada pelos corredores negros Tommie Smith e John Carlos, que ganharam, respectivamente, as medalhas de ouro e bronze na prova dos 200 metros rasos das Olimpíadas de 1968, sediada na Cidade do México. Durante a execução do hino nacional norte-americano no pódio, a dupla ergueu o punho em sinal de protesto, um gesto característico dos Panteras Negras, o que levou à fúria do Comitê Olímpico Internacional (COI) à época.
O contexto de luta racial também era flagrante no regime de apartheid da África do Sul, onde o líder Nelson Mandela já cumpria pena de prisão perpétua na cela 466/64 do presídio da Ilha de Robben, próxima à Cidade do Cabo. Acusado de sabotagem e de conspiração com outros países para uma possível invasão ao território sul-africano, Mandela se declarou culpado da primeira queixa, mas jamais assumiu a segunda. Só conheceria a liberdade mais de duas décadas depois, em 1990, curiosamente o mesmo ano em que Justin Fashanu traria sua homossexualidade a público.
Antes de enfrentar a homofobia, portanto, Fashanu já conhecia um preconceito tão sombrio quanto: o racismo. A Inglaterra dos anos 1960 e 1970 também colocava negros e brancos em lados opostos do espectro social e era nítido o avanço do conservadorismo britânico. No parlamento, a líder da oposição e do Partido Conservador, Margaret Thatcher, era cada vez mais popular e se tornaria primeira-ministra do Reino Unido a partir de 1979. Nas ruas, protestos encabeçados por frentes de direita exibiam cartazes com os dizeres “BRITAIN FIRST” [“britânicos primeiro”] contra os imigrantes quetomaram o país, em especial os negros. Uma onda não muito diferente da que toma conta da Europa nas primeiras décadas do século atual e que levou à criação, em 2011, de um partido fascista com o mesmo nome, Britain First, fundado pelo político reacionário Jim Dowson.
Foi em meio a essa conjuntura político-social que cresceram os irmãos Fashanu em Shropham. E só um fator pôde mudar a realidade deles no vilarejo: o esporte. Aos poucos, Justin e John ficaram conhecidos como os ‘negros bons de bola’ do bairro. Especialmente o irmão mais velho, que se destacava pelo porte físico e agilidade. Justin chegou a experimentar o boxe, mas foi no futebol que encontrou possibilidade de criar uma carreira e deixar para trás a infância sofrida. Aos 15 anos, entrou na categoria juvenil do principal time da região, o Norwich City, e, com menos de 18, foi alçado equipe profissional. “Ele é forte, alto, rápido, marca gols, é bom em bolas altas. Um jogador completo”, exaltou John
Bond, treinador do clube à época, em entrevista a uma rede de televisão inglesa. Fashanu se tornou uma grande promessa e já era convocado para a seleção sub-21 da Inglaterra.
Com o número 8 às costas e a camisa amarela do clube ‘canário’, como é conhecido o Norwich, o filho de Pearl poderia até ser confundido com um jogador da seleção brasileira, tamanha a habilidade que tinha para limpar os zagueiros e marcar gols. Foram 35 bolas na rede em 90 jogos. E um deles marcaria o auge da sua carreira. Na temporada 1979/1980, o Norwich enfrentou o Liverpool, o time inglês mais popular da época, em seu acanhado estádio. De costas para o gol, Fashanu recebeu um passe de John Ryan na entrada da grande área, ergueu a bola com o pé direito e virou o corpo para acertar um lindo chute de pé esquerdo. No canto do goleiro Ray Clemence. Um detalhe: o atacante era destro. O gol de placa de Fashanu foi eleito o mais bonito da temporada pela Federação Inglesa. O prêmio era o que faltava para que a fama subisse à cabeça do jovem Justin.
— Aquele gol atraiu todos os olhos para Fashanu. Foi um gol absolutamente histórico de um time pequenino contra um gigante do futebol inglês. O Norwich era um time considerado absolutamente pequeno, debochado pelos outros por ser a ‘equipe dos camponeses que dirigem tratores’. E Justin colocou este time nos holofotes — comenta Tim Vickery, correspondente da BBC no Brasil, que à época ainda vivia na Inglaterra e acompanhou de perto o surgimento de Fashanu no futebol inglês.
Dali em diante pouca coisa daria certo na sua carreira. Fashanu passou a não saber mais lidar com o estrelato. Era tão conhecido em Norwich que julgava ter o direito de fazer o que bem quisesse. Chegava atrasado aos treinamentos e muitas vezes desrespeitava leis de trânsito na cidade, com o pretexto de que era o melhor jogador do clube local e que, por isso, poderia escapar das multas e punições. Ele sabia que a carreira de jogador não era eterna e queria aproveitar ao máximo aquele período, sem medir consequências. Certa vez, um setorista esportivo do Norwich o questionou sobre “como ele via sua vida dali a dez anos”. Fashanu se limitou a responder:
— Eu gostaria de ser ainda mais rico e mais famoso do que sou hoje.
— Isso soa meio materialista, Justin — retrucou o repórter.
Mas para o jogador, depois de tantas dificuldades na infância, era preciso se estabelecer financeiramente e chegar ao topo.
— Há algumas vantagens em ser famoso com essa idade. Eu já tenho um carro bacana e, é claro, de vez em quando, uma ou outra garota vem me procurar — brincou com o jornalista.
A frequência com que Fashanu aparecia na mídia aumentava de maneira exponencial. E foi no final da temporada 1980/1981 que ele se viu pela primeira vez estampando a capa dos tabloides esportivos da Inglaterra com a manchete:
“FASHANU: FIRST $1 MILLION BLACK
FOOTBALLER”
[“FASHANU: PRIMEIRO JOGADOR NEGRO DE $1
MILHÃO]4
— tradução livre.
Era o voo mais alto do canário revelado no pequeno Norwich. Fashanu se transformava no primeiro negro do futebol inglês a ser transferido no valor de um milhão de libras esterlinas. E seu destino não era um clube qualquer. Ele era a nova contratação do estrelado Nottingham Forest, então bicampeão da Liga dos Campeões da Europa e time a ser batido na Inglaterra no início dos anos 1980. Todos queriam jogar na equipe do técnico Brian Clough, que tinha fama de rigoroso, mas era considerado um dos grandes treinadores do país.
— Clough tinha um poder de humilhar. Era o típico técnico que gosta de ganhar o jogador mais pelo medo que pela admiração. Era um poder que ele usava para incentivar os jogadores. Mas olhando para trás hoje, talvez ele se arrependa de ter tratado Justin daquela maneira — opina Vickery.
O treinador se tornou a maior pedra no sapato de Fashanu. Ter os dois na mesma equipe era ter uma das combinações mais perigosas no futebol: um técnico muito exigente e um jogador pouco compromissado. O rendimento da nova estrela era muito aquém do esperado: em seus 32 jogos pelo clube alvirrubro, marcou apenas três gols e viu a crônica esportiva criticá-lo inúmeras vezes pelo mau desempenho. Pior do que isso, muitos o condenavam por levar uma vida de ‘playboy’. Clough tentou a todo custo emprestá-lo ao Derby County, mas a fama de ‘jogador problema’ já havia colado em Fashanu, que se tornou um ‘peso’ no elenco no Forest. Mas sua cabeça foi definitivamente colocada a prêmio quando surgiram os primeiros boatos de que suas agitadas noites em Nottingham tinham endereços certos: as boates gays da cidade.
Era o início da derrocada na carreira de um jogador que, além de dificuldades técnicas, também começava a dar sinais de desgaste psicológico. Clough não aceitou. Ficou revoltado. Era fora do normal ter um ‘viado’ no time. Ainda que Fashanu negasse a homossexualidade, não havia mais espaço para ele na equipe. Foi suspenso pelo treinador e não pôde mais treinar ou vestir a camisa do Nottingham Forest. Durante a temporada 1981/1982, foi ao clube para participar de um treinamento contra a vontade de Clough, que insistiu para que ele fosse embora. Mas Fashanu bateu o pé e acabou retirado à força de campo por dois policiais chamados pelo clube. Tudo devidamente registrado por jornalistas e fotógrafos.
“CLOUGH CALLS IN POLICE! FASHANU TOLD BY FOREST BOSS: GET OUT!”
[“CLOUGH CHAMA A POLÍCIA! CHEFE DO FOREST DIZ A FASHANU: VÁ EMBORA DAQUI!”]5
— tradução livre.
“A carreira de Fashanu no Forest acabou porque ele era gay”, cravou Ambrose Wendy, agente do jogador à época,em entrevista ao Forbidden Games. Ele estava certo. Depois do fracasso no Nottingham, Fashanu nunca mais teria sucesso em outro clube inglês. Foi emprestado ao Southampton, depois ao Notts County e ao Brighton, mas em todos teve desentendimentos, desempenhos ruins e agravou uma lesão que tinha no ligamento do joelho. Chegou a tirar um período sabático no futebol para procurar o pai na Nigéria, mas o reencontro não foi tão caloroso quanto o esperado. Sem se ver há quase trinta anos, os dois tinham pouco em comum e não se reconheciam enquanto família.
Fashanu tinha apenas 25 anos em 1986. Poderia estar no auge da carreira e ser titular da seleção inglesa, que fez uma bela campanha e chegou às quartas de final da Copa do Mundo no México. Em 22 de junho daquele ano, 114 mil pessoas lotaram o Estádio Azteca para assistir à vitória da Argentina sobre os ingleses por 2 a 1, com um gol de mão anotado por Diego Armando Maradona e validado pelo árbitro tunisiano Ali Bin Nasser. ‘La mano de Dios’. Fashanu viu aquela partida pela televisão, longe de poder fazer qualquer coisa que mudasse o destino de seu país no mundial. Decidiu que tinha potencial e precisava voltar à vida de atleta. No fim da temporada, se mudou para os Estados Unidos, onde fez uma cirurgia no joelho e assinou contrato com o Los Angeles Heat.
Viveu uma boa fase. Fez cinco gols em 12 jogos pelo clube e foi comprado pelo Edmonton Brickmen, onde aumentou ainda mais a média: 17 bolas na rede em 26 partidas. Fashanu se considerava um jogador ‘regenerado’ e agora até mesmo religioso. Frequentava igrejas cristãs e afirmou em diversas entrevistas:
— Não faço gols para mim. Faço gols para Deus.
Estava pronto para voltar à sua terra natal. No retorno à Inglaterra, passou rapidamente por Manchester City e West Ham, onde foi pouco aproveitado pelos técnicos. Ainda pesava sobre ele toda a carga pejorativa da imprensa inglesa no tratamento de sua suposta homossexualidade e o afastamento da família. Praticamente não tinha contato com a mãe biológica e muito pouco até mesmo com os pais adotivos. O irmão John vivia o auge de sua carreira, também como jogador de futebol, no modesto Wimbledon, time da região sul de Londres. Por muitas vezes, a imprensa questionou se não havia lugar para os dois Fashanus no clube, mas John deixava claro que preferia manter distância do irmão.
— Não acho que seria bom ele vir para cá. Eu não quero a síndrome do irmão mais velho que rouba a cena mais uma vez. De qualquer forma, é bom ele estar bem e voltar logo [ao futebol]”, afirmou John em entrevista a uma rede de TV inglesa.
O ano de 1990 seria marcante na vida de Justin Fashanu. No início da temporada, ele assinou contrato com o Leyton Orient, pequeno clube londrino que disputava à época a terceira divisão. A essa altura, a sexualidade dele já era clara para muitas pessoas, ainda que ele negasse e tentasse manter as aparências. Ninguém tinha muitas dúvidas. “Ele aparecia frequentemente com um homem mais jovem, um michê. Mas ele não ligava. Não importava o que diziam, ele não iria assumir”, declarou Bill Songhurst, fisioterapeuta do Orient naquela época, às filmagens de Forbidden Games.
Ao contrário de sua passagem pelo Nottingham Forest, Fashanu encontrou um treinador que o apoiava na decisão de assumir sua orientação sexual publicamente. Diferente de Brian Clough, o pesadelo do jogador em seu antigo clube, Frank Clark, técnico do Orient, tentou convencer Fashanu a ‘tirar o peso das costas’. Mas o assunto o deixava apavorado. “Nenhum time o aceitaria mais se isso acontecesse”, opinou Ambrose Mendy, agente de Fashanu.
Eram os anos finais do governo conservador de Thatcher. Era o auge da epidemia de AIDS na Europa e em muitos países do globo. Era uma Inglaterra que ainda não reagia bem à homossexualidade. Os jovens britânicos viviam sob a Lei de Delitos Sexuais, sancionada em 1967, cujo texto caracterizava como crime hediondo os casos em que menores de 21 anos fizessem qualquer referência a sua sexualidade, se não fossem heterossexuais. Naquela época, até a maior parte da centro-esquerda era desfavorável às relações homossexuais: 67% dos simpatizantes do Labour Party (Partido Trabalhista) viam anormalidade em relacionamentos homoafetivos, segundo o Levantamento Britânico de Atitudes Sociais.
Mas Fashanu não aguentava mais viver à sombra da mentira. Na edição do dia 22 de outubro de 1990, o tabloide The Sun estampou na capa:
£1M FOOTBALL STAR: ‘I AM GAY’
[ASTRO DO FUTEBOL DE £1 MILHÃO: ‘EU SOU GAY’]
— tradução livre
Na reportagem escrita pelo jornalista Allan Hall, Fashanu não só fazia a ‘confissão’ de sua sexualidade, como também revelava um caso que teve com um deputado conservador casado que ele havia conhecido em um bar gay de Londres. O nome do parlamentar não foi incluído na matéria, mas tratava-se de David Atkinson, que confirmou o relacionamento à família depois que sua esposa leu a matéria do The Sun.
— A primeira coisa que eu soube sobre David e Justin Fashanu foi quando eu levei o meu filho ao dentista, sentei-me na sala de espera e abri o The Sun. As manchetes diziam que ele era gay e tinha um caso com um membro do Parlamento casado, que morava no sul da Inglaterra. Aquilo foi uma paulada na minha cabeça, pois ele [Fashanu] esteve conosco muitas vezes e eu quase o considerava parte da família. E eu notei que algo deveria ter acontecido. Liguei para o David. Ele admitiu que era gay e que ele e Justin Fashanu tiveram uma relação, que fizeram sexo na Câmara dos Comuns e ele havia sentado na cadeira do porta-voz. Ele admitiu tudo — revelou Sue Parsons, ex-esposa de Atkinson, também em entrevista ao documentário sobre a vida de Fashanu.
Para o bem e para o mal, a história estava registrada pela mídia. Justin Fashanu se tornava o primeiro jogador de futebol — um esporte caracterizado fortemente pela heteronormatividade — a se assumir gay. Ele fez aquilo porque precisava mostrar ao mundo sua real condição, mas também porque viu na revelação uma forma de capitalizar e seguir vivendo ao estilo ‘bon vivant’. Fashanu já não era mais um atleta de futebol, ainda que aquela fosse a única função a qual ele acreditava que poderia exercer. Agora, mais do que isso, ele era um objeto de uso da mídia sensacionalista britânica que explorou sua história como pôde, sempre exibindo sua orientação sexual de forma escandalizada.
Anos depois, já em 1994, Hall falou ao diário britânico Independent7 sobre a relação de Fashanu com o dinheiro queos jornais lhe ofereciam em troca de supostas revelações de sua vida íntima.
— Ele não parecia se importar com o que sua mãe ou seu irmão pensariam de tudo aquilo. Só estava interessado na grana. Era obcecado: envelopes cheios de despesas, voos de primeira classe, champanhe em boates e hotéis chiques.
Hall tinha razão. Fashanu não deixou que a família o repreend
esse. O irmão John bem que tentou fazer Justin desistir da ideia de assumir a homossexualidade. Era uma vergonha para ele que o irmão dissesse ser gay. Recentemente, já em 2015, ele admitiu, em entrevista ao Daily Mirror, que ofereceu 75 mil libras para que Justin ficasse no armário8. O ex-atacante do Wimbledon disse que ‘implorou e ameaçou’ seu irmão, dizendo que ele não poderia ‘envergonhar a família’ ao dizer a verdade sobre sua orientação sexual.
Toda a confusão em torno das suas declarações na mídia e a rejeição por parte do irmão mais novo abalaram ainda mais o psicológico já afetado de Fashanu, que não conseguiu mais jogar futebol com a confiança e a tranquilidade necessárias. Entre 1990 e 1993, ele passou por diversos clubes na própria Inglaterra (como Southall, Leatherhead e Torquay United), chegou a jogar no Canadá (pelo Hamilton Steelers e o Toronto Blizzard), na Escócia (pelo Airdrieonians) e até na Suécia (pelo Trelleborg). Um verdadeiro peregrino da bola.
Em 1994, Fashanu viu seu nome envolvido em mais um escândalo, desta vez um caso de polícia, quando o político conservador Stephen Milligan foi encontrado morto em seu próprio apartamento no bairro londrino de Chiswick. Tudo começou em um domingo, 6 de fevereiro daquele ano, véspera da morte de Milligan, quando a revista de celebridades People publicou um relato de que o jogador teria tentado fazer um trato de 300 mil libras em troca da revelação de casos sexuais que teve com parlamentares do alto escalão do governo britânico.
No dia seguinte, o corpo de Milligan foi encontrado nu e asfixiado com um fio em volta do pescoço em seu imóvel. Logo as suspeitas recaíram sobre o próprio Fashanu, que fez questão de negar e dizer que não tinha relações com o político.
E ainda afirmar que todas as histórias relatadas anteriormente foram inventadas por ele.
Em entrevista ao mesmo Independent, o repórter Phil Taylor, da People, confirmou que Justin tentou um acordo financeiro com a publicação.
— Ele nos deu nomes de dois ministros com quem alegava ter se relacionado sexualmente. Se a história pudesse ser provada, é possível que tivéssemos colocado 300 mil libras na mão dele. Mas descobrimos que ele não tinha nenhuma evidência. Nós nunca soubemos o que é a verdade e o que não a verdade. É preciso ter muito cuidado ao lidar com o ‘Mr.
Fashanu’ — disse o jornalista9, duvidando da veracidade das revelações que o jogador dava à imprensa.
Sem evidências concretas, as investigações policiais descartaram a hipótese de assassinato e classificaram como uma ‘asfixia autoerótica’ a provável causa da morte de
Milligan. Ainda assim, o caso arranhou ainda mais a imagem de Fashanu na Inglaterra.
Cansado das acusações e da perseguição dos repórteres e fotógrafos, ele não sabia mais se valia a pena ter exposto sua sexualidade e chegou a ter um relacionamento de fachada com a atriz Julie Goodyear, que à época interpretava Bet Lynch na popular novela britânica Coronation Street, exibida pelo canal ITV. Poucos se convenciam do amor entre os dois. Fashanu já havia criado em torno de si o estereótipo do ‘jogador gay’ e, mesmo que, de maneira confusa, tentasse apelar para uma relação heteronormativa, toda a carga preconceituosa e questionadora sobre sua condição sexual já estava fadada à opinião popular.
Deixar a Inglaterra foi a única maneira que encontrou de tentar limpar sua imagem e tentar recomeçar no futebol. Em 1997, passou pelo pequenino Atlanta Ruckus, da segunda divisão dos Estados Unidos. Depois, foi para a Nova Zelândia, onde atuou como jogador em seu último clube: o Miramar Rangers. Desanimado com o futuro como atleta profissional, decidiu pendurar as chuteiras aos 36 anos. Era hora de tentar agora a carreira de treinador e aceitou, já no início de 1998, comandar o Maryland Mania, time da cidade de Baltimore, novamente em terras norte-americanas. Ali, Fashanu conheceria a última crise de sua conturbada carreira. E de sua vida.
Em março, após ter dado uma festa em seu apartamento na cidade, Fashanu foi acusado de estupro por um garoto de 17 anos, que disse ter acordado na cama do ex-atacante com sinais de abuso sexual depois de ter sido embebedado. Fashanu chegou a prestar depoimento para a polícia, dizendo que o sexo havia sido consensual, mas um pedido de prisão foi expedido em 3 de abril de 1998. Quando as autoridades foram cumprir o mandado em sua casa, ele havia fugido para a Inglaterra e foi considerado foragido.
Justin Fashanu ainda viveu escondido da polícia norte-americana por um mês. Em 2 de maio, não suportou a pressão e se suicidou. Seu corpo foi encontrado com fio enrolado no pescoço em uma garagem de Shoreditch, um bairro no norte de Londres conhecido pela cena alternativa, bares e boates. Fashanu morreu onde provavelmente viveu seus momentos de maior alegria, longe do julgamento daqueles que insistiam em moldá-lo ao padrão do que um jogador de futebol, com 1,85 de altura e bom de bola, deveria ser.
jornal norte-americano Washington Post, que então já tinha uma versão online, noticiou a morte de Fashanu com o título “Astro do futebol acusado de crime sexual é encontrado
morto”10. Na matéria, o repórter Gabriel Escobar entrevistou um dos melhores amigos de Fashanu, Peter Tatchell, que analisou o suicídio como consequência de uma “vida completamente errada no início dos anos 1990”.
— Justin era muito confuso e infeliz com sua sexualidade. Suas tentativas de relacionamento com mulheres fracassaram e se via forçado a ter encontros sexuais furtivos com homens. Era impossível ter uma relação gay estável. Para completar, os muitos amigos religiosos insistiram em que ele fosse celibatário, enquanto ele ainda tinha fortes desejos de relacionamentos com homens. Nesse tipo de situação, qualquer um poderia se abalar psicologicamente — declarou Tatchell.
Para ele, apesar da carreira conturbada, Fashanu deixou um legado: “Ele mostrou que os gays podem assumir seu espaço mesmo em esportes machistas, como o futebol. Isso ajudou a minar alguns dos estereótipos”.
Uma última carta escrita pelo jogador antes do suicídio foi encontrada pelas autoridades:
“Eu percebi que já havia sido considerado culpado. Não quero mais ser uma vergonha para minha família e meus amigos. Ser gay e uma pessoa conhecida é muito difícil, mas não posso reclamar disso. Queria dizer que não agredi sexualmente o jovem. Ele teve sexo consensual comigo e, no dia seguinte, me pediu dinheiro. Quando eu recusei, ele falou ‘espere e você vai ver só’. Se esse é o caso, eu ouço vocês dizerem, por que eu fugi? Bom, a Justiça nem sempre é justa. Senti que não teria um julgamento justo por conta da minha homossexualidade.”
A denúncia contra Fashanu seria arquivada poucos dias depois pela polícia de Baltimore por falta de provas. Dois anos depois do suicídio, o irmão John Fashanu deu entrevista a um programa de TV inglês, onde se lamentou por não ter feito nada antes que Justin morresse. Ele contou em que recebeu um telefonema do irmão na véspera da morte:
— Eu atendi uma ligação no meu celular e a pessoa não falava. Eu conseguia ouvir a respiração, eu conseguia saber que era alguém da minha família. Eu conseguia sentir que era ele.
Eu apenas coloquei o telefone no gancho e pensei: ‘É ele outra vez’.
Já em 2012, John disse em entrevista que Justin não era gay e estava apenas buscando atenção.
— Eu não sou homofóbico e nunca fui, mas naquela época, eu certamente errei com meu irmão. Passo as noites me perguntando se poderia ter feito mais e a resposta é sim, poderia ter feito mais. Isso me consola? Não. Nós choramos por quase duas décadas pelo Justin, isso é suficiente.
A combinação de uma infância conturbada, o abandono da família, o racismo e posteriormente a homofobia no contexto esportivo e social tornaram Justin Fashanu uma pessoa problemática. Dadas todas as circunstâncias, não surpreende que tenha terminado de forma trágica a história do primeiro jogador a transgredir a barreira da homossexualidade no futebol profissional. Ele foi o primeiro homem a mostrar o quanto é complicada a tarefa de quebrar esse tabu dentro de campo e, mais de duas décadas após sua morte, são poucos os atletas que cruzaram essa linha.
*É jornalista, com passagem pela redação de O Estado de S. Paulo.
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