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Franny & Zooey é uma novela sobre olhar uma história a partir de diversas perspectivas. Argumentos são disparados de um para o outro como balas de revólver – perfurantes e, muitas vezes, dolorosamente críticas.
Por Laura Pilan, colaboração para Frentes Versos
É comum que saibamos sobre J. D. Salinger apenas o que Holden Caulfield nos deixou. Veja bem, o “apenas” não passa de um recurso de estilo: as páginas de O Apanhador no Campo de Centeio são mais densas do que parecem à primeira vista. A perpétua insatisfação do protagonista com uma sociedade padronizada, suas inquietações espirituais e a constante sensação de deslocamento são extremamente conhecidas pela família Glass em Franny & Zooey.
Caulfield nos afunda em sua subjetividade e é através de sua mente que conhecemos todos os aspectos da realidade. Com ele, circulamos erraticamente por Nova York, presos em bares, hotéis, táxis e parques. Curiosamente, experimentamos sentimentos opostos – mas igualmente claustrofóbicos – com os jovens Franny e Zooey. Deles, conhecemos somente o que Buddy Glass está disposto a revelar. As pessoas reais são personagens de sua obra – capazes, inclusive, de apresentar objeções sobre a distribuição do livro.
Não há dúvidas de que Salinger se preocupa com a eficácia das palavras. Em uma sentença emblemática, Holden declara: “Esse é que é o problema com os imbecis como você. Nunca querem discutir coisa nenhuma”. O protagonista de O Apanhador no Campo de Centeio está em uma constante busca por alguém com quem possa discutir pensamentos. Contudo, uma conversa nunca atinge sua função primordial. No romance, a dificuldade de narrar não é apenas um tema, mas um sentimento histórico incorporado pela forma e pela obra. Um processo muito parecido nos é revelado através das experiências de Franny e Zooey. Há personagens – como Lane – que só falam com o objetivo de inflar o próprio ego. E há outros – Bessie, por exemplo – que não são afiados o bastante para penetrar a dureza das sentenças ou compreender a origem da revolta. Os irmãos formam uma espécie de grupo impenetrável – somente eles são capazes de entender uns aos outros.
Franny & Zooey é uma novela sobre olhar uma história a partir de diversas perspectivas. O diálogo combativo sobre ideias abstratas – filosóficas e religiosas – acontece obsessivamente: argumentos são disparados de um para o outro como balas de revólver – perfurantes e, muitas vezes, dolorosamente críticas. Do interior caótico do apartamento localizado no Upper East Side, transborda certa teatralidade, intensificada pela ênfase aos pequenos gestos e pela movimentação entre os restritos cenários disponíveis. Acima de tudo, há sempre uma cortina a ser fechada.
A agitação de Holden diante da religiosidade – ele não compreende os apóstolos ou a condição muito particular das freiras – adquire imensurável profundidade em Relatos de um peregrino russo e O peregrino continua sua jornada, livros que outrora pertenceram a Buddy e Seymour e, agora, configuram uma compulsão para Franny. A oração “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim” se torna uma espécie de mantra na medida em que ela adentra esse universo tão desapontador e falso. Tudo ao seu redor parece superficial e, subitamente, é impossível atingir algo significativo por meio da discussão de qualquer problema pseudointelectual.
J. D. Salinger confia tanto no poder da palavra literária que cria um denso debate espiritual, estruturado a partir de diferentes concepções de fé. Mais uma vez, percepções distintas se digladiam – de forma quase brutal. Zooey se incomoda visceralmente com o raso entendimento de Franny sobre a oração de Jesus. Para ele, Cristo precisa ser enxergado como uma figura de missão extremamente importante e não há motivos para rezar sem apreender as razões reais de sua jornada. O princípio de Sri Ramakrishna, ilustrado na parede de Seymour e Buddy, estabelece Deus como uma figura poderosa o bastante para compreender a pureza de um fiel que o adora erroneamente. Retomar as antigas crenças de seus companheiros torna-se inspirador – assim como o ambiente se transforma em algo como um templo – e, deste modo, Zooey encontra a forma ideal de ressignificar o misticismo cuidadosamente grafado no cômodo.
O jovem recupera a imagem da “Gorda” por quem costumava engraxar os sapatos antes de entrar no palco do programa Sábia Criança. Ela se transforma em uma imagem sagrada máxima e incorpora a humanidade em sua corpulência. Não se trata de enxergá-la como uma entidade que conduz o universo por eles, mas como um objeto de devoção pelo qual eles agem. A mulher e, consequentemente, a audiência não são somente um público que não compreende sua expressão artística. Desta forma, a atuação – paixão sobre a qual Franny apresenta dúvidas – também se metamorfoseia em uma prática religiosa.
O Apanhador no Campo de Centeio mostra Holden em um estado de recuperação incerta. Caulfield retrata uma série de encontros com pessoas que sonham as mesmas coisas, frequentam os mesmos lugares e desejam os mesmos produtos. Ele representa um contrafluxo, de modo que seus anseios são qualquer coisa menos isso. Nas páginas do romance, é descrito o ímpeto latente de se desvincular completamente da produção de personalidades padronizadas. Todavia, o ápice de sua crise existencial o leva a uma lenta inserção nessa sociedade que é, acima de tudo, o problema. Por sua vez, a primeira lição que Franny nos deixa é que não há um caminho certo a ser seguido – fazer parte da fabricação em série de indivíduos iguais é uma armadilha e a transgressão desse paradigma é só mais uma maneira de adequação. Ser como os outros ou destoar inteiramente são destinos similarmente ruins. Contudo, as palavras assertivas de Zooey e o sorriso de Franny nos ensinam outra coisa: vale a pena tentar.
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TÍTULO: Franny & Zooey
AUTOR: J.D. Salinger
EDITORA: Todavia
ANO DA EDIÇÃO: 2019
(Os textos de colaboração não expressam necessariamente a opinião da FV)
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