\\ TEATRO
É fundamentalmente contraditório escrever sobre Farm Fatale pois a palavra, no espetáculo, serve de oposição à imagem, e aos diferentes quadros que são seguidamente elaborados nas mudanças do palco.
Por Bruno Pernambuco
Escrever sobre Farm Fatale é um ato irônico, assumidamente contraditório, embora nisso também se faça tranquilizante. Em primeiro lugar, é impossível revelar qualquer coisa a respeito da história do espetáculo - sua verdadeira história é aquela que se desenrola após o fechamento das cortinas, a eclosão do futuro que germina, ora escondido, ora apresentado, durante toda trama. Aquilo que o espectador acompanha não é exatamente a história da vida de Pécuchet, um educado e ativista espantalho, no contexto de um mundo em que a industrialização e o uso de agentes químicos arrasaram os espaços rurais, e a forma como esta muda quando ele conhece um grupo de outros espantalhos que, de uma fazenda abandonada, mantém uma estação improvisada de rádio, onde são transmitidos sons passados, gravados, de animais que um dia povoaram aquele cotidiano, além das músicas e programas feitos pelo grupo; nem a vida desse bando, atravessada pela chegada do estrangeiro de tal forma que vão se transformar todas as suas relações; nem é, inteiramente, a fábula do nascimento de uma revolução, que começa com o esvaziamento da vida sem trabalho - já que não existem mais pássaros para espantar - e culmina, ou poderia, na ação radical.
É fundamentalmente contraditório escrever sobre Farm Fatale pois a palavra, no espetáculo, serve de oposição à imagem, e aos diferentes quadros que são seguidamente elaborados nas mudanças do palco. A expressividade da obra está escrita a partir do cenário e de suas transformações, dos figurinos, das máscaras, humanas e comoventes, dos personagens, e das belíssimas composições físicas elaboradas pelos atores para animar a vida particular de cada um daqueles espantalhos. Se esses quadros funcionaram muito bem, isolados, como uma história completa e emocionante, a função da linguagem em Farm Fatale é quase que inteiramente irônica. Ela está lá o tempo todo para desestabilizar a seriedade daquela história, e para contradizer a verdade que está posta. Momentos privilegiados em que isso acontece, durante a peça, são os interlúdios musicais, que servem como uma espécie de oposto jocoso do musical convencional. Em de revelar o sentimento do personagem que canta, ou de revelar de forma privilegiada algo sobre o contexto daquela história, as músicas do espetáculo zombam de seus intérpretes, satirizam o vazio daquela vida, escancaram ainda mais a contradição entre aquele espaço desolado e desprovido de alma e o desejo que pode existir de um retorno ao passado, ou de reencontro com um lugar acolhedor, que permita àqueles bonecos humanizar-se, em seus sentimentos- uma casa.
Essa ironia marca um aspecto importante: Farm Fatale é uma Revolução dos Bichos que não se leva a sério, e que fala mais sobre o esgotamento dos horizontes que sobre a transformação trazida pela ação política. O futuro desse futuro distópico, ao qual os personagens se agarram com todas as forças- no estoque dos ovos, cuidados como artefatos mágicos, dos quais nascerá um mundo novo- é tão desconhecido deles quanto é da platéia, e pode muito bem ser aquilo que devora-os por fim. O rompimento com aquele mundo destruído é o mandado fundamental, não importa se virá pela criação de um mundo novo (ou a recriação de um antigo) ou por suicídio. Farm Fatale não é tão autoindulgente a ponto de apontar-se como caminho certo. Toda a peça é um grande desvio, como aquele que está, desde o início, apontado no palco.
***
FARM FATALE
(Sesc Vila Mariana)
DIREÇÃO E PRODUÇÃO: Philippe Quesne / Münchner Kammerspiel
ALEMANHA/FRANÇA, 2019 | 1h30min | Classificação indicativa: 12 anos
Comments