\\ TEATRO
Assistir às Mãos Sujas é sempre um presente, conquanto traz uma oportunidade rara para o espectador de enxergar-se nas dúvidas de uma existência (necessariamente livre, diria Sartre) em conflito tanto com sua própria determinação quanto com as imposições externas, do mundo e da relação com o mundo.
Por Bruno Pernambuco
A obra de Jean-Paul Sartre principia de uma escrita rebelde, arisca, que recusa a adaptar-se à sua própria forma. Isso vê-se em seus romances, apaixonadamente titereando a linha entre discurso filosófico e narrativa ficcional, assim como em sua obra estritamente filosófica, revolucionária e original, que assume o peso da liberdade em seu próprio conteúdo. Especialmente, porém, se faz presente essa marca em seus textos para teatro, meio onde é de antemão ingrata a tarefa do realizador de trazer para um presente físico, limitado pelo tempo, pelo espaço e pela existência do outro, algo que não existe de forma enunciada, e assim transformar em potência criativa a limitação daquilo que não tem forma. Em se tratando de As Mãos Sujas, a construção de um mundo fica, ainda mais que o normal, a cargo da imaginação dos encarregados da adaptação. A beleza do texto, de suas contradições e inversões filosóficas, pode ser expressada de formas muito diferentes, ainda que tudo gire em torno da ilusão de Hugo, o personagem principal, de que tudo gira em torno de si.
Assistir às Mãos Sujas é sempre um presente, conquanto traz uma oportunidade rara para o espectador de enxergar-se nas dúvidas de uma existência (necessariamente livre, diria Sartre) em conflito tanto com sua própria determinação quanto com as imposições externas, do mundo e da relação com o mundo. Na versão dirigida por José Fernando Peixoto de Azevedo, vemos um Sartre desmontado, exposto em sua completa nudez, tal que são explicitados seus elementos técnicos e segredos de bastidor, postos como parte de seu mundo. Essa completa abertura engendra uma prisão muito mais sufocante. Assim como se estivessem em Entre Quatro Paredes, a condenação dos personagens é que não existe “fora”, lugar que seja escapatória da própria liberdade. Esses seres nunca deixam o palco. Se o fazem, são seguidos pela câmera que rodeia o espetáculo e que, numa projeção que faz parte da cena, exibe belas, porém repetitivas, imagens inspiradas na fotografia do Cinema Novo. Essa projeção dá a tônica do espetáculo, em que a direção é toda saturada, intensificada, o grave chiado dissonante que destoa da regida harmonia dos diálogos. Assim, a montagem se afirma, e encontra sua voz particular, mas também se arrasta, suprimindo o espaço necessário para que as imagens poéticas ressoem, e se internalizem e desenvolvam na plateia.
Esculpindo seu material com forças que puxam em direções opostas, As Mãos Sujas vem cheio de força e intensidade, mas também com muito receio em relação à sua fonte original. Uma relação muito engessada com o texto torna as inovações visuais do espetáculo cansativas e repetitivas, uma vez que acabam por preencher um espaço que não lhes cabe. Mesmo com essas questões, é impossível passar incólume aos dilemas que a obra suscita, e aqui a beleza da pena de Sarte, por vezes perdida sob o malcheiroso lodo do cânone, é redescoberta no encontro transformador.
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Serviço
As Mãos Sujas
sextas, sábados e domingos, às 20h
180min
14 anos
R$ 20,00
Dias 21, 22 e 23/3 não haverá apresentações
Texto: Jean-Paul Sartre; Direção e dispositivo de cena: José Fernando Peixoto de Azevedo; Elenco: Gabriela Cerqueira, Georgina Castro, Paulo Balistrieri, Paulo Vinicius, Rodrigo Scarpelli, Thomas Huszar e Vinicius Meloni
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