\\ TEATRO
Pensado como uma apresentação na décima sétima Documenta de Kassel, na Alemanha, Casa-Mãe é um espetáculo que não foge de seu contexto original, alimentando-se desse embate entre opostos.
Por Bruno Pernambuco
Contos Imorais - Parte 1: Casa Mãe não é um matricídio. Mais do que isso, parece ser uma visita àquele delicado processo de se dar conta do estado terminal da mãe simultaneamente amada e odiada. Para falar da falência de uma Europa, o espetáculo se estrutura em torno da figura do Parthenon, como casa dessa história europeia, descendente e reintérprete dos gregos. Esse espaço, enquanto casa, é também o lugar da infância dessa civilização, de seus desejos mais desnudos, de suas inseguranças mais essenciais, aquela experiência inominável que tem sua vida definida pela segurança e receptividade desse lugar. É tudo aquilo que a racionalidade que pauta historicamente esse modo de vida não alcança a respeito de seu próprio viver- o porão sob as luzes da democracia grega. É interessante, então, que seja o corpo transexual, que habita de forma única essa tradição e pode refletir sobre ela, tanto a montar quanto a violentar essa construção pré-fabricada, símbolo do fim de uma possibilidade do pensamento arquitetônico. Esse corpo, além de partir de uma necessidade de afirmação, através da ação política que transforma a tradição, é também sinal de uma transformação possível, daquilo que, apresentando uma outra forma de existência, é contraponto a essa história que se apresentou e apresenta como universalidade, e que pensou dessa forma a respeito de si mesma.
Pensado como uma apresentação na décima sétima Documenta de Kassel, na Alemanha, Casa-Mãe é um espetáculo que não foge de seu contexto original, alimentando-se desse embate entre opostos. Essa justaposição entre o antigo e o novo, entre o decadente coração da democracia, abandonado e explorado, e o novo centro econômico da União Europeia, aquele que tem realmente poder de decisão, dá outros sentidos às fricções que atravessam o espetáculo- a discrepância entre a pobreza do papelão usado como material de construção e o espírito elevado do prédio que ele constrói, a dualidade da casa como proteção e, ao mesmo tempo, como prisão (que é resolvido apenas pela ação da intérprete na precisão dos golpes de motosserra) e a permanência incômoda do lixo que persiste em cena- que, se no início era o excesso, o desnecessário à montagem da casa, no final é a ruína daquilo que teve significado, e que ainda se apresenta como único vestígio que permita lê-lo.
No final da peça são invocados os deuses e sua ira é apresentada como força transformadora. É aquela intervenção capaz de fazer o que o humano não pôde alcançar, se o ataque à caixa de papelão apenas ratifica a imagem icônica do edifício. É de uma beleza enorme como essa lavagem final, a chuva destruidora e redentora, é o único momento do espetáculo que não é pautado inteiramente pela ação humana e pela intencionalidade, enquanto decisão e esforço racional. É indefinido se a construção da obra já antevia sua destruição final, e, de qualquer forma, a maneira como a enchente destrutiva opera é um exato oposto do esforço e da obsessão de Phia Menard no erguimento da estrutura de papelão- a natureza se expressa em movimentos inexatos, e não tem atenção ao que destruído, mais do que teria se fosse uma casa comum sendo levada abaixo, ou um galpão abandonado que nunca teve sentido de lar, ou mesmo uma caixa de papelão qualquer, a que não tivesse sido atribuído significado. Esse processo de demolição deixa consigo uma série de perguntas. Onde é que habitamos, se não mais presos dentro da casa antiga? O que temos, além do reflexo na poça da chuva que deixou somente as ruínas? São as páginas em aberto, que após o espetáculo continuam a arder no público com sua força própria.
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CONTOS IMORAIS – PARTE 1: CASA MÃE - MITsp 2020
(Sesc PINHEIROS)
TÍTULO ORIGINAL: CONTES IMMORAUX – PARTIE 1: MAISON MÈRE
DIREÇÃO: Phia Ménard
FRANÇA, 2017 | 1h30min | Classificação indicativa: livre
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